sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Um livro por dia - Jeremy Mercer.

Quem de nós, aficionados por livros, nunca se imaginou, ainda que de forma utópica, morando em uma livraria, repousando em meio a diálogos imaginários com Machados, Saramagos e Tolstois?
Fantasias à parte, foi exatamente o que o jornalista canadense Jeremy Mercer fez quando, após uma insólita perseguição em seu país, acabou indo parar, de mala e cuia e quase sem dinheiro nas portas da livraria Shakespeare and Company, em Paris. A aventura é relatada em “Um livro por dia – Minha temporada parisiense na Shakespeare and Company”, publicado pela editora Casa da Palavra.

Lema da livraria inscrito num dos cômodos.

Era janeiro de 2000, na virada do segundo milênio quando o acaso colocou Mercer frente a frente com o excêntrico George Whitman, na época quase octogenário, proprietário daquela que este mesmo definia como “uma utopia socialista em forma de livraria”.
Vale esclarecer que a Shakespeare and Company de George teve sua origem inspirada na livraria homônima fundada por Sylvia Beach, famosa na primeira metade do século XX por ser um ponto de encontro dos jovens escritores da “geração perdida”. Sylvia fechou as portas em 1941, sob pressão do nazismo e uma década depois, num prédio do século XVIII, George inaugurou sua loja.
Ainda hoje a pitoresca livraria tem por tradição acolher “almas perdidas e escritores necessitados”, segundo a filosofia de seu fundador. Em troca de um lugar para dormir, os hóspedes só precisam ajudar nas tarefas diárias e cumprir uma inusitada missão: escrever ali uma obra e - sabe-se lá como – ler um livro por dia.

Com habilidade jornalística, Mercer descreve os quatro meses em que viveu entre os milhares de volumes da livraria, que recebe turistas do mundo inteiro, a maioria atraída por lendas como a de que George seria filho do poeta Walt Whitman e de que Shakespeare em pessoa teria morado ali.

Não é lenda, porém, o fato de que pelo local já passaram dezenas de milhares de escritores e artistas, incluindo nomes famosos como Henry Miller, Anaïs Nin, Jack Kerouac e Allen Ginsberg.
Em sua temporada na Shakespeare and Company, Mercer torna-se amigo de Kurt, um jovem norte-americano que tenta transformar em romance o roteiro de seu primeiro filme; vive momentos impagáveis com o enigmático poeta inglês Simon, ex- alcoólatra e usuário de haxixe; e acaba se apaixonando por Elina, uma linda artista plástica romena nada convencional. Mas a figura mais intrigante é o próprio George, um sonhador com ideias comunistas e um estilo de vida muito peculiar.

George Whitman em frente a sua loja.
Comandando de forma caótica a contabilidade da livraria, guardava dinheiro nas estantes e até mesmo embaixo dos colchões. Não por acaso, o local era alvo de ladrões que surrupiavam os livros à menor distração do proprietário, que apenas se queixava de que “eles nem ao menos vão lê-los”.
Sobrevivendo às excentricidades de George e seus hóspedes, a estadia na livraria torna-se para Mercer uma experiência altamente enriquecedora. Ao fim de alguns meses, tendo alugado seu próprio apartamento, ele encontra um jeito de retribuir a hospitalidade do amigo usando para isso seu talento no jornalismo investigativo.
“Um livro por dia” sugere ser, à primeira vista, uma obra sobre o amor aos livros. Também pode parecer – e é – a história da Shakespeare and Company e de seu fundador, o inquieto George Whitman.
Mas no fim, acaba se revelando um livro sobre encontros e o que eles podem provocar na vida de uma pessoa.


PS: A Shakespeare and Company mantém-se ainda hoje, firme e forte, num charmoso quarteirão da Rive Gauche, às margens do Rio Sena, agora sob o comando da filha de George que, não por acaso, se chama Sylvia Beach Whitman. Com sorte, é possível flagrá-lo, quase centenário, descendo ao primeiro andar para buscar o jornal do dia.

Um livro por dia
Jeremy Mercer
Casa da Palavra
(Resenha publicada dia 27/08/2011 no Caderno Pensar, Jornal A Gazeta - Vitória - ES)