domingo, 29 de janeiro de 2012

Nelson Rodrigues, O Anjo Pornográfico (Ruy Castro)

Como afirma Ruy Castro, logo na introdução de "O Anjo Pornográfico", não há jeito de contar a história de Nelson Rodrigues (1912-1980) e de sua família, a não ser em forma de romance. Com lances trágicos e rocambolescos, sua vida consegue superar até mesmo a ficção que ele levou para os livros e peças de teatro, com toda crueza e fascínio capazes de existir na vida como ela é.
Nesta excelente biografia, o autor preocupa-se, não em analisar criticamente a obra desse grande intelectual, mas as circunstâncias em que ela foi produzida. Ou seja, os bastidores, o cotidiano, o pensamento, as emoções que inspiraram a vida de um dos nossos mais famosos - e polêmicos - escritores e dramaturgos.
Para Ruy Castro, Nelson era mais que um homem de teatro. Se houve um palco principal em sua vida, seriam as instalações do jornal. Ou até mesmo as ruas - especificamente do Rio de Janeiro dos anos 40, 50, 60.
Ninguém melhor do que ele para retratar o dia a dia comum de gente comum, com todas as suas imperfeições, obsessões, medos, taras e paixões.
Pagou um preço. Foi chamado de tarado durante anos. E no fm da vida, de reacionário. Foi perseguido pela direita e pela esquerda. Por cristãos e ateus. Porém, seu talento era inquestionável.
Para escrever O Anjo Pornográfico, Ruy Castro realizou centenas de entrevistas com pessoas que conheceram intimamente Nelson Rodrigues e sua família, cujos dramas mais parecem folhetins. Quinto filho dos 14 de Mário Rodrigues e Maria Esther, Nelson nasceu no Recife. Seu pai, letrado e leitor voraz, conciliava atividades políticas e jornalisticas. Depois de várias incursões na política e em jornais do Recife, acabou indo parar no Correio de Manhã, no Rio de Janeiro, para onde sua esposa o seguiu, já com uma escadinha de filhos.
Nelson começou a frequentar a escola e aprendeu a ler "quase de estalo". Mas o que chamava a atenção sobre sua figura era "sua cabeça enorme, desporporcional ao tronco." Aos oito anos, no segundo ano primário, a professora quase deixou cair os óculos ao ler a redação do menino: um caso de adultério onde o marido, ao chegar em casa, encontra a esposa nua na cama e um vulto saindo pela janela.
Essa temática estaria presente em toda a obra de Nelson. Mas antes disso, ele passaria anos trabalhando em jornais. Primeiro, os do seu pai, A Manhã (tinha apenas 13 anos e meio) e Crítica, onde também teriam cargos seus irmãos Mário Filho, Milton e Roberto. E posteriormente, em O Globo, de Roberto Marinho. Ainda em A Manhã, Nelson em pouco tempo tornou-se editorialista, ao lado de Monteiro Lobato e Agripino Grieco.Tinha 16 anos.
O jornal "Crítica", fundado por seu pai em 1928, tinha um editorial mais agressivo, cujo lema era "Declaramos guerra de morte aos ladrões do povo". O forte eram as fotos dos políticos com as cabeças distorcidas. Mas tinha uma tendência de dar ênfase tanto a fatos políticos, quanto a ocorrências criminais, sempre em tons apelativos. Certo dia, quando o jornal se excedeu no tema ao anunciar um rumoroso caso de desquite, a redação tornou-se palco de um crime.
Pior: o assassinato de um membro da família Rodrigues.
No dia 27 de dezembro de 1929, Sylvia Seraphim adentrou a redação procurando por Mário Rodrigues ou qualquer um de seus filhos. Ao ser atendida por Roberto, desferiu um tiro que alojou-se em sua coluna. Ele morreu dias depois, deixando a familia desolada. Foi a primeira grande tragédia da vida de Nelson. 67 dias depois, seu pai Mário Rodrigues, que jamais se recuperara do golpe, morre de derrame.
Esses dois acontecimentos dão o tom do que seria a vida de Nelson dali para a frente. Junto com outros jornais, o dos Rodrigues foi atingido pelo "empastelamento", na Revolução de 30, tendo que fechar as portas. Para se recuperarem do baque financeiro, Mário Filho e Nelson vão trabalhar no jornal O Globo, de Roberto Marinho. Com a familia passando dificuldades na ditadura de Getúlio Vargas, a saúde de Nelson se fragilizou e anos depois, ele contrairia uma tuberculose que o acompanharia por 15 anos, além de várias outras complicações. Nos periodos em que se internava em sanatórios para se tratar, nunca deixou de receber seu salário no jornal O Globo.
Entre uma e outra internação, casou-se com a jovem Elza, que conhecera no jornal. Tanto a família dela quanto o próprio Roberto Marinho se opunham ao casamento. A mãe dela, porque ele era pobre e "não tinha onde cair morto". Marinho, porque apesar de brilhante, considerava o jovem Nelson "preguiçoso e doente". Não adiantou. Casaram-se secretamente no Civil até que família dela concordasse com o casamento religioso.
Trabalhando em dois jornais, Nelson começou a enveredar pelo caminho do teatro.
Escreveu A Mulher sem Pecado, que conseguiu boas críticas, e em seguida, Vestido de Noiva,  essa sim, uma  revolução e um marco no moderno teatro brasileiro. Produziria outras grandes obras, como Beijo no Asfalto, Bonitinha mas Ordinária e os Sete Gatinhos. Paralelamente, manteve suas célebres colunas em O Globo e Última Hora (de Samuel Wainer). Publicou livros de crônica e romances como "Asfalto Selvagem" e "O casamento". E acabou se envolvendo com outra mulher, Lúcia. Ao separar-se de Elza para casar com o novo amor, tinha 49 anos e filhos já adultos. Ele e Lúcia tiveram uma filha, Daniela, que nasceu com um grave problema, cega e condenada a viver sobre uma cama. Mais um entre tantos dramas que permearam a vida do grande autor. Anos depois, ele retomaria o casamento com Elza, com quem viveu até os últimos dias.
A riqueza de detalhes com que Ruy Castro nos conta a trajetória e o legado deixado por Nelson Rodrigues para a cultura em nosso país, nos faz conhecer não apenas o biografado, mas inúmeros personagens fascinantes que fizeram parte de sua existência, como seu pai Mário Rodrigues, o irmão Robeto, pintor e ilustrador precocemente morto, o genial Ziembinski, o poderoso Roberto Marinho e a igualmente polêmica Dercy Gonçalves.Tudo tão intenso que os retratados parecem velhos conhecidos nossos. Mas nenhuma descrição supera a da persona Nelson Rodrigues, que até o fim da vida  dividiu opiniões entre os que o amavam e o odiavam. Sua obra, porém, não deixa dúvidas sobre a grandiosidade de seu talento.
Talvez a melhor definição de sua personalidade tenha vindo mesmo do próprio Nelson:
"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”.

O Anjo Pornográfico
Ruy Castro
Editora: Companhia das Letras
Ano: 1992

O polêmico Nelson Rodrigues:

“Invejo a burrice, porque é eterna”

“O brasileiro é um feriado”

"A fidelidade devia ser facultativa."

“Só o inimigo não trai nunca”

"Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava"

 "Toda unanimidade é burra."

O autor:
Nascido em 1943, em Caratinga, MG, Ruy Castro atuou a partir de 1967 em importantes veículos da imprensa do Rio e de São Paulo e iniciou a produçao de livros em 1988. Reconhecido pela produção de biografias, como "Estrela Solitária" (sobre Garrincha)  e "Carmen" (Carmen Miranda), além de obras de reconstituição histórica, como "Chega de Saudade" (sobre a Bossa Nova) e  "Ela é Carioca" (sobre o bairro de Ipanema).