sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Rebecca. Obra-prima ou plágio?

O maior sucesso da escritora britânica Daphne Du Maurier (1907-1989), o romance Rebecca é lembrado no Brasil por duas características. Por ter sido levado à telona pelo mestre do suspense, Alfred Hitchcock. E pela suspeita de plágio sobre a obra A Sucessora, da brasileira Carolina Nabuco (adaptada para a TV em 1977). 

Independente das semelhanças (comprovadas), Rebecca é um livro instigante, com uma trama que prende o leitor e uma narrativa ágil, por vezes cinematográfica. Para alguns, a história beira o sobrenatural, por conta do suspense da trama. No entanto, sobressai o drama psicológico de uma jovem simples que, ao se casar com um viúvo muito rico, encontra dificuldade em adaptar-se à nova vida, à sombra da esposa falecida, Rebecca.

Chama atenção o fato de que a voz que narra a história é da própria jovem, que permanece sem nome durante todo o livro. Em forma de memórias, ela relata a viagem a Monte Carlo, França, como dama de companhia da esnobe Mrs Van Hopper, na qual conhece o melancólico viúvo Max de Winter, sobre quem paira uma aura de mistério.

Embora ele seja vinte anos mais velho e ela, humilde e inexperiente, nasce entre os dois uma amizade que evolui para um pedido de casamento. Mais adiante saberemos que a jovem é em tudo o oposto da falecida senhora de Winter.

Casados no exterior, antes mesmo de chegarem à lendária Menderley, propriedade da família, onde irão viver, a jovem percebe que o esposo não se sente bem em comentar sobre seu passado.
O desconforto aumenta quando ela passa a viver na velha mansão vitoriana cheia de aposentos fechados, lugares obscuros e a lembrança de Rebecca em toda parte. Um vaso de flores numa sala, um lenço manchado dentro de um casaco, os cartões de visita numa gaveta, uma dedicatória dentro de um livro. Fazia apenas dez meses da tragédia em que a primeira esposa de Max perdera a vida (num acidente no mar) e todos ainda sentiam sua presença no lugar.

Embora o marido fizesse de tudo para que ela ficasse à vontade, nossa protagonista percebe que os criados, alguns amigos e a própria irmã de Max, Beatrice, que faz visitas ocasionais a Menderley, a consideram “muito diferente de Rebecca.”

Eu a conhecia agora, as pernas longas e bem feitas, os pequenos e delicados pés. Ombros mais largos que os meus, mãos inteligentes e débeis. Mãos que sabiam governar um barco, que podiam sofrear um cavalo. Mãos que arranjavam flores, construíam modelos de navios e escreviam "A Max,  Rebecca", na página branca de um livro. (...) E se entre centenas de outras eu ouvisse sua voz, saberia reconhecê-la. Rebeca, sempre Rebecca! Eu nunca me livraria de Rebecca.

A sensação é mais forte por conta de Mrs. Danvers, governanta e criada pessoal de Rebecca, que nutre pela ex-patroa uma admiração obcecada, lembrando seus hábitos, sua beleza e elegância, e mantendo seu quarto exatamente do jeito em que estava por ocasião de sua morte.
Durante os passeios com o marido e o cão Jasper nas redondezas, a moça percebe movimentos estranhos do animal em relação a uma cabana próxima à praia. E nota que Max tudo faz para evitar o local. Decidida a compreender os mistérios de Rebecca, ela desenvolverá uma obsessão por tudo que se refere à falecida. E encontrará as respostas numa reviravolta impressionante. 

Por conta desse romance, Du Maurier conquistou uma legião de admiradores e o filme de Hitchcock ajudou a fixar na memória do público a imagem de Rebecca, “a mulher inesquecível.”
Pesquisando sobre o assunto, sabe-se que Daphne du Maurier escreveu Rebecca quatro anos após  Carolina Nabuco publicar A Sucessora (1934). De fato, a brasileira havia enviado uma tradução de sua obra em inglês para uma agência literária de Nova Iorque, nunca tendo recebido resposta. Três anos depois, du Maurier lança seu romance com temática excepcionalmente semelhante. No entanto, apesar da suspeita de plágio, nossa escritora brasileira nunca se animou a mover um processo contra a britânica. Em suas memórias, Oito Décadas, Nabuco cita uma passagem em que foi procurada pelo advogado de uma produtora inglesa, por ocasião das filmagens do filme de Hitchcock.


Quando o filme Rebecca chegou ao Brasil, o advogado de seus produtores (United Artists), Dr. Alberto Torres Filho, procurou meu advogado, Bartolomeu Anacleto, para pedir-lhe que eu me prestasse a assinar um documento admitindo a possibilidade de ter havido mera coincidência. Se me prestasse a isso, eu seria compensada com uma quantia que o Dr. Torres qualificou como “de ordem patrimonial”. Não anuí, naturalmente.

Apesar do impasse, não se nega a qualidade do texto da autora, uma das mais queridas escritoras do Reino Unido. O que torna as histórias especiais é a forma de contá-las, algo que Daphne du Maurier sabia fazer muito bem.  

Rebeca
Daphne du Maurier
Abril Cultural

396 páginas

Um amor raro.

Flores Raras e Banalíssimas (Carmen L. Oliveira)


Quem passa pelo Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro de hoje,  não imagina que por trás desse "inusitado" parque à beira-mar, que abriga entre outras atrações, o Museu de Arte Moderna, existe o dinamismo e a obstinação de uma mulher: Carlota de Macedo Costalatt Soares, a Lota. Uma figura que, contra todos os preconceitos machistas da época, conseguiu a proeza de comandar um grupo de renomados profissionais (incluindo o paisagista Burle Marx e os arquitetos Sergio Bernardes e Afonso Reidy), enfrentando obstáculos e derrubando “mesquinharias políticas” para realizar seu sonho de concreto. 

Em Flores Raras e Banalíssimas, a escritora Carmen L. Oliveira desvenda o mundo de Lota nas décadas de 50 e 60, quando ela participa da construção do Parque do Flamengo, ao mesmo tempo em que vive uma história de amor com a premiada poetisa norte-americana Elizabeth Bishop.




Recorrendo a diários, ofícios e cartas de ambas, Carmen compõe um texto que mistura biografia com diálogos imaginários, recriando situações e dando voz não apenas a Lota e Bishop, mas também a personagens impagáveis como um grupo de espevitadas velhinhas amigas da brasileira, que já nos anos 90, com comentários à boca pequena, revelam detalhes da relação entre as duas, comparando a exuberância de Lota com “as esquisitices da gringa”.

Mas o livro não se resume a mexericos. Revela-se um registro valioso sobre como uma mulher, em plenos anos 60, e sem formação superior em arquitetura, esteve à frente da construção de um parque monumental, dedicando literalmente seus últimos anos de vida à realização desta obra.
Figura ímpar, tenaz, inteligente, revolucionária, Lota valia-se de um gênio indomável e fama de mandona para conseguir (quase) tudo o que queria.
Amiga do então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (que lhe dera carta branca na execução do projeto), não tinha pudor em interferir em suas decisões, nem de lhe fazer críticas em tom mal- humorado
 – Carlos, não seja idiota! – sempre que discordava de suas posições.

Elizabeth Bishop, ao contrário, é pintada por Carmem como uma mulher insegura, “sem graça” que volta e meia recaía no vício do alcoolismo tendo que ser monitorada e cuidada pela companheira. Não que ela fosse inexpressiva. Respeitada e laureada em sua pátria natal, Bishop recebeu o prêmio Pulitzer em 1956, pela obra “North & South”. Mas no Brasil era mais conhecida como a companheira de Lota.




O livro não segue uma ordem cronológica exata, intercalando as décadas de 50 e 60, tempo que durou o romance, com trechos de memórias de Bishop e passagens dos anos 90, com os irresistíveis testemunhos das amigas de Lota que recordam sua personalidade, sua relação com Bishop, e os motivos que a levaram a desistir da vida em 1967.
Entre 1951 e 1967, enquanto Lota Macedo se envolve com Elizabeth Bishop e abraça a causa da concepção e construção do parque do Flamengo, o Brasil vive a bossa-nova, a inflação, a queda de Getúlio, a ascensão e derrocada de Carlos Lacerda, e o advento do Golpe Militar. Turbulências no país e na relação entre as duas.
Mulher culta, refinada, frequentadora das altas rotas de artistas e intelectuais, e arquiteta autodidata, Lota também era considerada uma pessoa da pá virada, que vivia de acordo com suas ideias.
Foi em sua moderna casa, que construiu com o amigo Sergio Bernardes, encravada na mata de Samambaia, Petrópolis, que ela recebeu Elizabeth Bishop, que na época passava por um período de bloqueio criativo. Era o ano de 1951. Com uma personalidade complicada, cheia de traumas de infância, doenças e o vício do alcoolismo, Elizabeth encontra no Brasil e nos braços de Lota a paz para voltar a escrever. Naquele lugar que ela mesma considerou um paraíso, produziu alguns de seus melhores poemas, muitos com alusão a temas brasileiros. Mas nem tudo são flores (raras ou não). O relacionamento que começa feliz, aos poucos se torna um peso para ambas. Enquanto Lota é dinâmica, decidida e vivaz, Elizabeth é retraída e insegura. Os amigos de Lota não se entrosam com aquela americana "achacadiça" que, depois de cinco anos no Brasil, ainda não falava português. Enquanto Lota considerava Bishop um gênio, suas amigas a achavam “a imagem da semgracesa”. 
As coisas não ficam muito diferentes quando a brasileira embarca no grande projeto de sua vida, a construção do Parque do Flamengo. 
Dividida entre Petrópolis e o Rio, Lota enfrenta os mais diversos embates, movendo mundos e fundos e se indispondo com poderosos para realizar o projeto. Entre outras desavenças, rompe publicamente com Burle Marx, ambos expondo suas divergências em notas nos jornais.
A obra, que consome sua vida, também a afasta de Elizabeth, que sentindo-se solitária e preterida, em vários momentos volta a afogar as mágoas na bebida.
Para superar o vazio, a poetisa embarca para os EUA para dar aulas em uma universidade, no momento em que Lota vive os maiores impasses, alvo de críticas inclusive na imprensa. Na América, envolve-se com uma jovem aluna, que se dedica a ela de forma apaixonada.
Em 1967, com o parque já concluído, Lota é afastada da Fundação que iria administrá-lo. Nada mais lhe resta, senão seguir ao encontro de Elizabeth para tentar retomar a ligação. Está deprimida e com a saúde abalada.
Na mesma noite em que chega, após uma longa conversa, as duas vão dormir exaustas. Horas depois, Elizabeth acorda com um barulho na cozinha, chegando a tempo de amparar Lota, que cai em seus braços com um vidro de Valium vazio, entrando em em um coma do qual não mais desperta. Um telegrama para o Brasil traz a triste notícia para os amigos.



Elizabeth Bishop

No desamparo de uma e de outra, tanto Elizabeth quanto Lota têm razão em sua dor. Há quem diga que Bishop abandonou a companheira quando ela mais precisava de apoio. E há quem pense que Lota a deixara de lado para conduzir o projeto de sua vida. 

Nas páginas finais do livro, uma das amigas de Lota afirma que Bishop provocou sua morte. Outra assegura que quem matou Lota foi o Parque do Flamengo. Talvez ambas estejam certas.
Em sua delicadeza, Flores Raras e Banalíssimas não é um livro sobre homossexualismo, feminismo nem tem a pretensão de levantar qualquer bandeira.
É antes de tudo um livro sobre amor, entrega e obsessão. Sobre a força de um sonho e sobre a fragilidade humana. Um livro sobre Lota e Elizabeth, cada qual com sua fraqueza, unidas pelo mesmo sentimento que, mais tarde, as separou.


FLORES RARAS E BANALÍSSIMAS
ED. ROCCO
CARMEN L. OLIVEIRA


1998

Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, onde foi publicado pela Rutgers University Press, o livro de Carmem Oliveira foi muito bem recebido, tendo conquistado os prêmios Stonewall Book, da American Library Association, e Lambda Literary Award. Mas a sua maior contribuição foi resgatar a figura de Lota Macedo num momento ímpar da história do Rio de Janeiro.

domingo, 9 de agosto de 2015

O Cachorro que caiu da mudança


Almoço de domingo, vamos todos nos reunir em volta do meu pai João Luís, quase oito décadas de vida, amor e doce rabugice. E ele, como de costume, vai desfiar histórias retiradas do fundo do baú das memórias.
Meu pai sofre de síndrome da saudade eterna do que já passou.
Do que passou, leia-se: o cheiro do quebra-queixo que era vendido no centro da cidade, a rachadura na parede da sala de estar do tio avô, a cor do vestido da personagem da última novela de Janete Clair.
O que não quer dizer que tenha gosto simplista. Ao contrário, ele é das pessoas mais cultas e refinadas que conheço.  Saudosista, coleciona velhos LPs de “música boa”. Exigente, passa horas de controle remoto em punho, procurando na TV fechada programas intelectuais que dão “traço” de audiência. E que ele emenda, jocoso: - Pois é, o traço sou eu.
Mas quando se trata de passado, seus olhos brilham. Ele, invariavelmente, sentirá saudade até daquilo que foi ruim, do que doía, daquilo que, quando era presente era muito, muito chato.
Esse é o velho João Luís.  Neto de João, o Jones. Pai do João, o Paulo. E avô do João, o Gabriel (meu amado filho). Conversador nato. Desses que, quando começa a falar, todos param para ouvir. Até porque, se não pararem, ele interrompe a narrativa num muxoxo: - Não conto mais.
- Conta, pai - dizemos todos, em coro.
E sabemos que será divertido, pois ele tem o dom de tornar a narrativa de um filme, muitíssimo mais interessante do que a própria película. Em meio a interjeições – O filme é lindo!- o velho João vai narrando a cena, com a voz embargada, e os olhos quase lacrimejantes, nos revelando um filme que só o olhar dele presenciou.  
O mesmo acontece com os relatos das histórias que viveu, emocionadas e emocionantes. E se não viveu, ele dá um jeito de estar presente na história do outro, contando exatamente o que ouviu e jurando que estava lá.
Nesses relatos vemos meu pai, aos dezessete anos, acordando às quatro da manhã só pra levar o irmão mais velho, Luiz Guilherme, ao quartel em Vila Velha, onde servia o exército. 
Motivo: era o único jeito de vovô liberar o automóvel, coisa rara nos idos de 50. Atravessava a cidade pela Lindenberg e voltava se sentindo um piloto de corrida.
Também o presenciamos vendo chegar ao Colégio Estadual, a bela morena que viria a ser minha mãe, com cabelo curtinho, última moda no Rio de Janeiro, onde passara as férias. Diante dos comentários elogiosos de outros rapazes da turma, ele afirma: - Tá no papo.
Foi com esse papo inteligente que o rapaz de boa família da capital passou a namorar a moça bonita do continente. No portão de casa, como ela recorda, na Rua Luciano das Neves, ele disparava a falar, falar, e ela a ouvir, a ouvir. Como o faz até hoje.
E assim, chegamos ao domingo em que ele nos contou a história do cachorro que caiu da mudança.
- Mas pai, isso é só uma expressão.  Cachorro que caiu da mudança, diz-se da pessoa que está perdida numa determinada situação.
- É, mas aconteceu comigo.
E toca a contar: - Fim dos anos 50, dona Carmosina e seu Lacerda, meus sogros, iam se mudar para a Praia do Suá.
Chego eu, na hora marcada, com o caminhão da mudança e encontro a família sentada, impassível, e Iedda anunciando, cheia de dedos: - Mamãe não quer mais se mudar.
Sem pensar duas vezes, eu retruco, resoluto: - Ah, mas agora ela vai!
E, virando-me para os funcionários da mudança: - Podem começar.
Refaço agora a sequência descrita pelo meu pai: o caminhão segue na frente entulhado de móveis e lembranças. Ele acompanha atrás, em seu carro, quando, num cruzamento no cine Santa Cecília, vê despencar da mudança um pacotinho de pelo, que aterrissa, quase que suavemente no meio da rua.
- Para, para! - grita ele, deixando o volante de seu carro, em meio ao trânsito da época, no centro de Vitória, para recuperar, ileso e assustado, o cãozinho da minha mãe, Jerry, que meu tio Roberto deixara escapulir do alto do caminhão.
Aí está: o cachorro que caiu da mudança.
E - acreditem - foi meu pai quem o salvou.


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Sobre Cães, Rock e Letras

Hoje à noite meu irmão José Roberto Santos Neves tomará posse na Academia Espírito-Santense de Letras. Motivo de comemoração e orgulho que coroa uma história que ele vem escrevendo há mais tempo do se imagina.
Quem o vê hoje transitando com desenvoltura pelo mundo das Letras, junto com uma bem-sucedida carreira jornalística, talvez suponha que ele nunca tenha tido dúvidas sobre qual profissão seguir. Não exatamente. Antes de se formar Jornalista pela Universidade Federal do Espírito Santo e encontrar sua verdadeira vocação, ele quase se formou em Administração. Fato no mínimo curioso, já que o Jornalismo era um caminho óbvio na vida do menino que, desde cedo, manifestava curiosidade fora do comum e vivia pesquisando sobre assuntos de seu interesse, como raça de cães e futebol.
Não satisfeito em aprender sobre os temas, ele gostava de relatar as descobertas. Vivia com um livro sobre cães debaixo do braço narrando, para quem quisesse (ou não) ouvir, fatos curiosos sobre a espécie, como "qual o país de origem do Afghan Hound" ou "as inúmeras habilidades da raça Dobermann". Uma paixão tão grande que nos obrigava, irmãos mais velhos, a acompanhá-lo em suas peripécias, como um concurso de cães em Jacaraípe, no final dos anos 70, devidamente registrado em fotos por Guilherme.  
Para mim, única irmã, não faltam lembranças, como as brincadeiras em que ele era meu partner em programas "de TV" apresentados diante do espelho. Hoje, como ele mesmo admite, não pode pegar um microfone que dispara a falar.
Também coube a mim registrar sua primeira história, intitulada “Os três cãezinhos”, na qual ele narrava a chegada do nosso novo cão, Bug (que ele apelidou Boggie Ooggie, por causa de uma boate perto da nossa casa). Ao ser recebido pelos cães da família, Rex e Lobinho (assim mesmo, no diminutivo), o novo integrante recebe uma informação importante sobre o cachorro do vizinho - Au au au, Bug! O Bob é nosso inimigo! O texto datilografado ainda sobrevive, em papel amarelado, na casa dos meus pais.
Quem imaginaria que aquele menininho viraria jornalista e escritor? Eu imaginava.
No início dos anos 80, quando fui fazer um curso na Inglaterra, ele, então com dez anos, fazia questão de me escrever cartas, revelando as notícias, que dividia em tópicos como um mini jornal: "ESPORTES:  O Flamengo ganhou o título de campeão brasileiro, com certos erros do juiz". "DENÚNCIA: Você subornou Guilherme. Ele  diz que refrigerante é veneno". "MÚSICA: Caetano Veloso vem aqui em maio ou junho". "PESSOAL: Tirei 10 em Ciências, 8,2 em Matemática e 7,9 em Português".Tamanha criatividade me fazia rir e chorar de saudades do irmão caçula.
Numa das cartas ele conta, muito triste, que tinha tentado entrar com Guilherme no show do Caetano no Theatro Carlos Gomes, mas, por causa da idade, fora barrado pelo porteiro. Eu me pergunto: - O que fazia um menino de dez anos num show do Caetano? Era a música entrando em sua vida. Fato que se concretizou quando ele se uniu ao irmão João Paulo e nossos primos, Marcio Lacerda e João Damasceno, numa banda de rock – o Túmulo 7. Aos 13 anos ele, que parecia não ter qualquer aptidão musical, logo aprendeu a manejar as baquetas da bateria. O Túmulo 7 virou Seven, que virou Hell e depois o Zé foi perambular por outras bandas, como o Skelter e o The Rain.  Para nossa surpresa, pois, pelo que sei, ele não tem habilidade motora para mais nada na vida, a não ser batucar outro instrumento – o teclado do computador. Sem deixar de ser roqueiro, com o tempo ele aprimorou o gosto musical e resolveu – até por dever da profissão – conhecer outros ritmos, quando se apaixonou por Clara Nunes e Maysa, e se encantou pelo samba de João Nogueira, Paulinho da Viola, entre outros.  

Assim como tudo na vida do Zé, essa transição não aconteceu por acaso, mas seguiu uma lógica. Tendo passado de músico a repórter musical, da experiência que adquiriu cobrindo shows e eventos culturais, nasceram seus três livros – "Maysa", "MPB de Conversa em Conversa" e, por último, "Rockrise", o resgate de sua juventude na cena roqueira capixaba.
O que José Roberto sempre teve na vida foi coragem de ir à luta, meter a cara e fazer. Foi assim que ele escreveu seu primeiro livro, "Maysa" (Coleção Grandes Nomes do Espírito Santo). Mergulhou na pesquisa dentro e fora do estado, entrevistou nomes como Roberto Menescal e, contra todos os obstáculos, inclusive o silêncio do filho de Maysa, Jayme Monjardim, escreveu a primeira biografia da cantora. Essa persistência lhe rendeu momentos impagáveis desde a infância, como no dia em que fomos com mamãe à pracinha de Vila Velha, assistir a um comício de Gerson Camata, então candidato a Governador do Espírito Santo. O menino não sossegou enquanto não apertou a mão do Camata. Ele tinha uns oito ou nove anos na época. 
Com a paixão de quem tem necessidade vital de se expressar, José Roberto adora conversar e, quando o assunto lhe interessa, é capaz de disparar em sua análise e continuar falando até mesmo quando o interlocutor não está mais ouvindo. Não é raro a gente dizer a ele: - Zé, não estou podendo te dar atenção. Ao que ele retruca, com bom-humor: - Não faz mal, eu falo assim mesmo...
Se eu tivesse que resumir numa frase a razão pela qual José Roberto está ocupando, na Academia Espírito-Santense de Letras, a cadeira de um imortal de quem foi amigo e discípulo, o escritor e jornalista Marien Calixte, eu diria apenas:  - Estava escrito.
Quem conviveu com ele desde cedo nunca duvidou de seu talento precoce, sua persistência e seu amor pela arte e pela cultura em todas as formas. Voa, meu irmão.