domingo, 9 de agosto de 2015

O Cachorro que caiu da mudança


Almoço de domingo, vamos todos nos reunir em volta do meu pai João Luís, quase oito décadas de vida, amor e doce rabugice. E ele, como de costume, vai desfiar histórias retiradas do fundo do baú das memórias.
Meu pai sofre de síndrome da saudade eterna do que já passou.
Do que passou, leia-se: o cheiro do quebra-queixo que era vendido no centro da cidade, a rachadura na parede da sala de estar do tio avô, a cor do vestido da personagem da última novela de Janete Clair.
O que não quer dizer que tenha gosto simplista. Ao contrário, ele é das pessoas mais cultas e refinadas que conheço.  Saudosista, coleciona velhos LPs de “música boa”. Exigente, passa horas de controle remoto em punho, procurando na TV fechada programas intelectuais que dão “traço” de audiência. E que ele emenda, jocoso: - Pois é, o traço sou eu.
Mas quando se trata de passado, seus olhos brilham. Ele, invariavelmente, sentirá saudade até daquilo que foi ruim, do que doía, daquilo que, quando era presente era muito, muito chato.
Esse é o velho João Luís.  Neto de João, o Jones. Pai do João, o Paulo. E avô do João, o Gabriel (meu amado filho). Conversador nato. Desses que, quando começa a falar, todos param para ouvir. Até porque, se não pararem, ele interrompe a narrativa num muxoxo: - Não conto mais.
- Conta, pai - dizemos todos, em coro.
E sabemos que será divertido, pois ele tem o dom de tornar a narrativa de um filme, muitíssimo mais interessante do que a própria película. Em meio a interjeições – O filme é lindo!- o velho João vai narrando a cena, com a voz embargada, e os olhos quase lacrimejantes, nos revelando um filme que só o olhar dele presenciou.  
O mesmo acontece com os relatos das histórias que viveu, emocionadas e emocionantes. E se não viveu, ele dá um jeito de estar presente na história do outro, contando exatamente o que ouviu e jurando que estava lá.
Nesses relatos vemos meu pai, aos dezessete anos, acordando às quatro da manhã só pra levar o irmão mais velho, Luiz Guilherme, ao quartel em Vila Velha, onde servia o exército. 
Motivo: era o único jeito de vovô liberar o automóvel, coisa rara nos idos de 50. Atravessava a cidade pela Lindenberg e voltava se sentindo um piloto de corrida.
Também o presenciamos vendo chegar ao Colégio Estadual, a bela morena que viria a ser minha mãe, com cabelo curtinho, última moda no Rio de Janeiro, onde passara as férias. Diante dos comentários elogiosos de outros rapazes da turma, ele afirma: - Tá no papo.
Foi com esse papo inteligente que o rapaz de boa família da capital passou a namorar a moça bonita do continente. No portão de casa, como ela recorda, na Rua Luciano das Neves, ele disparava a falar, falar, e ela a ouvir, a ouvir. Como o faz até hoje.
E assim, chegamos ao domingo em que ele nos contou a história do cachorro que caiu da mudança.
- Mas pai, isso é só uma expressão.  Cachorro que caiu da mudança, diz-se da pessoa que está perdida numa determinada situação.
- É, mas aconteceu comigo.
E toca a contar: - Fim dos anos 50, dona Carmosina e seu Lacerda, meus sogros, iam se mudar para a Praia do Suá.
Chego eu, na hora marcada, com o caminhão da mudança e encontro a família sentada, impassível, e Iedda anunciando, cheia de dedos: - Mamãe não quer mais se mudar.
Sem pensar duas vezes, eu retruco, resoluto: - Ah, mas agora ela vai!
E, virando-me para os funcionários da mudança: - Podem começar.
Refaço agora a sequência descrita pelo meu pai: o caminhão segue na frente entulhado de móveis e lembranças. Ele acompanha atrás, em seu carro, quando, num cruzamento no cine Santa Cecília, vê despencar da mudança um pacotinho de pelo, que aterrissa, quase que suavemente no meio da rua.
- Para, para! - grita ele, deixando o volante de seu carro, em meio ao trânsito da época, no centro de Vitória, para recuperar, ileso e assustado, o cãozinho da minha mãe, Jerry, que meu tio Roberto deixara escapulir do alto do caminhão.
Aí está: o cachorro que caiu da mudança.
E - acreditem - foi meu pai quem o salvou.


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Sobre Cães, Rock e Letras

Hoje à noite meu irmão José Roberto Santos Neves tomará posse na Academia Espírito-Santense de Letras. Motivo de comemoração e orgulho que coroa uma história que ele vem escrevendo há mais tempo do se imagina.
Quem o vê hoje transitando com desenvoltura pelo mundo das Letras, junto com uma bem-sucedida carreira jornalística, talvez suponha que ele nunca tenha tido dúvidas sobre qual profissão seguir. Não exatamente. Antes de se formar Jornalista pela Universidade Federal do Espírito Santo e encontrar sua verdadeira vocação, ele quase se formou em Administração. Fato no mínimo curioso, já que o Jornalismo era um caminho óbvio na vida do menino que, desde cedo, manifestava curiosidade fora do comum e vivia pesquisando sobre assuntos de seu interesse, como raça de cães e futebol.
Não satisfeito em aprender sobre os temas, ele gostava de relatar as descobertas. Vivia com um livro sobre cães debaixo do braço narrando, para quem quisesse (ou não) ouvir, fatos curiosos sobre a espécie, como "qual o país de origem do Afghan Hound" ou "as inúmeras habilidades da raça Dobermann". Uma paixão tão grande que nos obrigava, irmãos mais velhos, a acompanhá-lo em suas peripécias, como um concurso de cães em Jacaraípe, no final dos anos 70, devidamente registrado em fotos por Guilherme.  
Para mim, única irmã, não faltam lembranças, como as brincadeiras em que ele era meu partner em programas "de TV" apresentados diante do espelho. Hoje, como ele mesmo admite, não pode pegar um microfone que dispara a falar.
Também coube a mim registrar sua primeira história, intitulada “Os três cãezinhos”, na qual ele narrava a chegada do nosso novo cão, Bug (que ele apelidou Boggie Ooggie, por causa de uma boate perto da nossa casa). Ao ser recebido pelos cães da família, Rex e Lobinho (assim mesmo, no diminutivo), o novo integrante recebe uma informação importante sobre o cachorro do vizinho - Au au au, Bug! O Bob é nosso inimigo! O texto datilografado ainda sobrevive, em papel amarelado, na casa dos meus pais.
Quem imaginaria que aquele menininho viraria jornalista e escritor? Eu imaginava.
No início dos anos 80, quando fui fazer um curso na Inglaterra, ele, então com dez anos, fazia questão de me escrever cartas, revelando as notícias, que dividia em tópicos como um mini jornal: "ESPORTES:  O Flamengo ganhou o título de campeão brasileiro, com certos erros do juiz". "DENÚNCIA: Você subornou Guilherme. Ele  diz que refrigerante é veneno". "MÚSICA: Caetano Veloso vem aqui em maio ou junho". "PESSOAL: Tirei 10 em Ciências, 8,2 em Matemática e 7,9 em Português".Tamanha criatividade me fazia rir e chorar de saudades do irmão caçula.
Numa das cartas ele conta, muito triste, que tinha tentado entrar com Guilherme no show do Caetano no Theatro Carlos Gomes, mas, por causa da idade, fora barrado pelo porteiro. Eu me pergunto: - O que fazia um menino de dez anos num show do Caetano? Era a música entrando em sua vida. Fato que se concretizou quando ele se uniu ao irmão João Paulo e nossos primos, Marcio Lacerda e João Damasceno, numa banda de rock – o Túmulo 7. Aos 13 anos ele, que parecia não ter qualquer aptidão musical, logo aprendeu a manejar as baquetas da bateria. O Túmulo 7 virou Seven, que virou Hell e depois o Zé foi perambular por outras bandas, como o Skelter e o The Rain.  Para nossa surpresa, pois, pelo que sei, ele não tem habilidade motora para mais nada na vida, a não ser batucar outro instrumento – o teclado do computador. Sem deixar de ser roqueiro, com o tempo ele aprimorou o gosto musical e resolveu – até por dever da profissão – conhecer outros ritmos, quando se apaixonou por Clara Nunes e Maysa, e se encantou pelo samba de João Nogueira, Paulinho da Viola, entre outros.  

Assim como tudo na vida do Zé, essa transição não aconteceu por acaso, mas seguiu uma lógica. Tendo passado de músico a repórter musical, da experiência que adquiriu cobrindo shows e eventos culturais, nasceram seus três livros – "Maysa", "MPB de Conversa em Conversa" e, por último, "Rockrise", o resgate de sua juventude na cena roqueira capixaba.
O que José Roberto sempre teve na vida foi coragem de ir à luta, meter a cara e fazer. Foi assim que ele escreveu seu primeiro livro, "Maysa" (Coleção Grandes Nomes do Espírito Santo). Mergulhou na pesquisa dentro e fora do estado, entrevistou nomes como Roberto Menescal e, contra todos os obstáculos, inclusive o silêncio do filho de Maysa, Jayme Monjardim, escreveu a primeira biografia da cantora. Essa persistência lhe rendeu momentos impagáveis desde a infância, como no dia em que fomos com mamãe à pracinha de Vila Velha, assistir a um comício de Gerson Camata, então candidato a Governador do Espírito Santo. O menino não sossegou enquanto não apertou a mão do Camata. Ele tinha uns oito ou nove anos na época. 
Com a paixão de quem tem necessidade vital de se expressar, José Roberto adora conversar e, quando o assunto lhe interessa, é capaz de disparar em sua análise e continuar falando até mesmo quando o interlocutor não está mais ouvindo. Não é raro a gente dizer a ele: - Zé, não estou podendo te dar atenção. Ao que ele retruca, com bom-humor: - Não faz mal, eu falo assim mesmo...
Se eu tivesse que resumir numa frase a razão pela qual José Roberto está ocupando, na Academia Espírito-Santense de Letras, a cadeira de um imortal de quem foi amigo e discípulo, o escritor e jornalista Marien Calixte, eu diria apenas:  - Estava escrito.
Quem conviveu com ele desde cedo nunca duvidou de seu talento precoce, sua persistência e seu amor pela arte e pela cultura em todas as formas. Voa, meu irmão.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Minhas Tudo (Mário Prata)

Há autores que nos fazem pensar, questionar, debater. Há autores que nos fazem sonhar, romancear. E há outros ainda que nos emocionam até as lágrimas. Seja qual for o gênero, o que importa é o quilate da literatura. Mario Prata é desses autores que nos deixam de alma leve, com suas crônicas espirituosas e seu humor sagaz. 
Ele não tem pudor de fazer os comentários mais estapafúrdios, de cara lavada, nem de se expor de calças curtas e rir de si mesmo.
Esse desprendimento está presente em “Minhas Tudo”, publicado pela Objetiva em 2001. 

Nesse divertido livro de crônicas, Prata faz um “inventário de si mesmo”, enumerando seu cotidiano através de objetos pessoais, seja um indiscreto criado mudo, um colchão usado ou um velho exemplar de Dostoiévski  “nunca lido”.
São dezenas de crônicas sobre os mais insólitos objetos e situações, o que permite que o livro seja folheado ao acaso, sem ordem cronológica, assim como são as histórias. No desencadear das ideias, cada texto traz em negrito a palavra que dará origem ao tema da crônica seguinte.
O autor incorpora com precisão o dom que todo cronista tem de narrar o cotidiano, com um olhar que todos possuímos, mas que só ele traduz em palavras. Muito do que o Prata escreve possivelmente já passou pela nossa cabeça, mas ninguém melhor do que ele para narrar situações triviais com o charme despretensioso dos que não se levam a sério. Um representante legitimo das pessoas comuns. 
Em "Minhas Tudo", entre outras hilárias situações, ele descreve a saga de um velho exemplar de “Obras Completas de Dostoiévski, Volume Quatro”. Um livro “viajadíssimo” que ele carrega pra todo lado: Alemanha, em 1978. Cuba, em 89.  E África, de 90 a 91 -, sem jamais ter lido uma linha sequer para saber “qual o bode dos irmãos russos”.  Com uma ressalva: as duas primeiras páginas, fabricadas com folhas de seda fininha, serviram para atividades menos literárias. Ele revela, na cara dura, que pode não ter lido, mas fumou Dostoiévski.
Com a mesma presença de espírito, lá vai o Mario registrar a conversa que teve certo dia com um vírus, alojado em seu computador. E o que esse vírus tinha de diferente dos demais?  Pasmem: ele não só tumultuava e ameaçava a integridade dos arquivos, como também a do próprio autor.
“- Você tem certeza que quer salvar este documento?”
“- Tenho”.
“- Absoluta? Tá uma merda.”
E a conversa se estende a ponto de o autor sonhar com a volta de sua velha Lettera 22.
Mais à frente, o cronista exaltará a importância de uma parte esquecida de nossa anatomia: o joelho, “essa palavra feia, que proporciona rimas fáceis e deselegantes”. Num quarto frio do Uruguai ele se dá conta da existência de seu joelho, que “sabe que lá fora está zero grau. E sofre, coitado.”  Seguem-se  as elucubrações pratianas sobre a serventia do dito cujo  – “Experimente fazer xixi com a perna um pouco esticada” ou “Se o sabonete cai no chão na hora do banho, esqueça.” “Mas a dificuldade maior é para se fazer amor, sem a colaboração total e imprescindível do joelho. É ele quem engata a primeira, e ele quem gira para uma marcha  a ré mais arriscada.”
Na lista de assuntos do Prata não falta o constrangimento de, durante a mudança para um apartamento novo, ver a gaveta de seu criado mudo se abrir, por acidente, deixando cair no hall do prédio e à vista dos futuros vizinhos, detalhes indiscretos de sua vida. Voaram pelo chão revistas Playboys, camisinhas, um par de brincos dourados, duas pilhas Duracell e um tubo de Redoxon, entre outros apetrechos. O “indecente  móvel” que ele considerava  mudo, entregou em poucos segundos cinco anos de sua vida.  
E quem melhor do que o Mario para analisar a utilidade de uma fila?
Contemporiza ele que “uma fila de banco é diferente de uma fila de padaria. Uma fila de campo de futebol não tem nada a ver com a fila do supermercado”.
“A pior fila, no consenso geral, é a fila do banco. Sim, você começa a sofrer com ela no dia anterior. Amanhã eu vou ter que ir ao banco. E você já dorme com a fila na cabeça(..). Ninguém esta feliz numa fila de banco ja notou? O sujeito ja chega sofrendo”. E não é que o Prata tem razão?
“Mas o pior na fila do banco é que a gente que está  mais atrás, olha a quantidade de papelzinho que o da frente tem na mão e logo pensa: isso vai longe.”
Mineiro de Uberaba, Mario Prata escreve como quem divaga, de cerveja na mão num sábado à tarde. Não é o que ele escreve,  mas a forma como o faz que o torna cativante. Tem se a  impressão de que ele é o primeiro a gargalhar de seus próprios escritos. Posso imaginá-lo fazendo pausas diante de um texto inacabado explodindo num riso solto antes de retomar a seriedade do oficio de escritor. Porque esse camarada, definitivamente, sabe rir de si mesmo tanto, quanto parece rir da vida.
 
Aconchegue-se no sofá ou na sua poltrona favorita e prepare-se para boas risadas. Acompanhe Mario falando de corpo, de umbigo, de aeromoça, de carteira e o que mais vier à cabeça. É muito provável que você feche o livro com a sensação de ter tido uma conversa leve com o vizinho ali do lado. 
Porque antes de ser um escritor ágil, certeiro e criativo, o Mario Prata é isso mesmo: o vizinho ali do lado.  


Minhas Tudo
Autor: Mario Prata
Editora Objetiva
Ano: 2001
Número de páginas: 224


terça-feira, 1 de julho de 2014

Alice e Ulisses (Ana Maria Machado)

O primeiro parágrafo já é um jogo de palavras que sibilam, remetendo a seu nome-sussurro: Alice. 
E já se prenuncia a vertiginosa viagem a que nos conduzirá a autora nesse caso de amor contemporâneo. Percebe-se um mergulho, um salto sem paraquedas, um voo no escuro. 
“Aliciada ela foi, vá lá. Mas porque quis, das delícias ao suplício. Vai ver achou que tinha alicerce. E tanto tinha que não perdeu a lucidez, nem mesmo na alegria inicial do cio, por mais variadas que tenham sido os desvairados desvãos e deslizantes desvios.”

É dessa forma que Alice, a protagonista, invade a vida de Ulisses, o outro. E também a do leitor.
Primeiro romance para o público adulto da escritora e jornalista Ana Maria Machado, Alice e Ulisses, lançado em 1983, já antecipava um insuspeito poder de sedução da autora, oculto por trás das histórias infantis nas quais ela reinava (e continua reinando, décadas depois).
Quando Alice, professora, descasada, conhece Ulisses, cineasta, casado, o que se segue é uma viagem pelo mundo da paixão, recheada de referências cinematográficas, enquadramentos sutis, citações poéticas e trechos de contos de fadas. Tudo para tecer o fio da meada que conduz à relação tempestuosa, voraz e intensa de Alice e Ulisses.  
Retrato de uma época (final dos anos 70), Alice e Ulisses registra um amor contemporâneo, em tempos de ditadura, nos quais a mulher ainda estava presa a estereótipos e o homem  (como sempre) se dividia entre aventuras extraconjugais e as bases sólidas de um casamento de aparências. Num tempo em que a relação homem-mulher ainda era cheia de arestas, com homens que podiam tudo e mulheres que pediam nada, a autora exerce sedução desde a primeira página, onde o encontro amoroso já está presente. E a poesia também.
Trata-se de um caso de amor, contado de um só fôlego, em exatas 113 páginas, usando como artifício um paralelo entre duas personagens universais, a destemida Alice (de Lewis Carrol), "capaz de mergulhar em tocas e viver aventuras" e o bárbaro conquistador Ulisses (de Joyce, releitura do Ulisses de Homero), em sua odisseia particular.  Só da mente de uma autora que se percebe contumaz leitora e amante dos clássicos, poderia surgir esse inusitado casal, cujos nomes rimam – como bem assinala uma personagem do livro, o bruxo Augusto (amigo de Alice), que os une - reúne.
É num evento de cinema que Alice, mulher moderna "que acha coquetel um pé no saco” e sempre “se esquece de pegar o guardanapo de papel para  limpar a mão”, conhece o cineasta Ulisses, que se encanta com a figura exótica “de cabelo solto e um imenso xale de velha siciliano, indeciso entre escorregar e enrolar os ombros”. Não se desgrudam mais. Entre os anos 70 e 80, vivem uma paixão atemporal, tanto ilícita quanto livre.
Bem que ela deveria ter desconfiado de que “o nome de Ulisses já indicava sua maneira de ser, saqueador de cidades, astuto e ardiloso, viajante e explorador.” Mas Alice, que tinha “total disponibilidade para mergulhar em tocas pela terra adentro",  paga pra ver.
O romance é entremeado por citações de contos de fadas, trechos de poemas e cenas de filme. Ela cita versos, ele a enquadra em imagens. Ela sabe onde pisa, ele se enreda, sem controle. “Foi duro aprender que quanto mais fosse amada mais ia ser dominada.” Mas Alice não é mulher de se dominar. Conhece os scripts, os lugares comuns do roteiro. Ela sabe como a história termina. Todos os personagens dele (o cineasta), ou matam ou morrem. “Você vai me matar.”
Quando Alice está cada vez mais envolvida numa relação na qual não é só Ulisses quem perde a razão, surge em seu caminho Adélia, a esposa (do grego Adelo, invisível). É a Penélope de Ulisses (ou Molly, de Joyce) entrando em cena.
"E, Deus do Céu, lá estava ela sentada diante da divina Adélia, deusa-Amélia do lar, muito arrumada nos cabelos pintados e penteados em cabeleireiro". E uma inusitada proposta fará nossa protagonista repensar todo o roteiro.
É justamente Adélia, tão tradicional, tão antiquada, tão Amélia, quem trará uma alerta a Alice: - A vida não é um conto de fadas, minha filha.
Numa linguagem sutilmente cinematográfica, Alice, que também é cinéfila, descobrirá qual será seu script.


Alice & Ulisses
Ana Maria Machado
96 páginas
Editora: Nova Fronteira