segunda-feira, 25 de abril de 2011

O paulista e o potiguar. A correspondência entre Mario de Andrade e Câmara Cascudo.

De um lado um paulista, um dos ícones do Modernismo, o criador de Macunaíma. Do outro, um potiguar atarracado, um dos maiores folcloristas do Brasil. Entre os dois, 20 anos de correspondência intensa e fiel. O resultado é este delicioso livro publicado pela editora Global.
Em “Câmara Cascudo e Mário de Andrade: Cartas, 1924-1944" (Global, 2010), obra organizada pelo professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Marcos Antonio de Moraes a correspondência entre o "Cascudinho" e o "compadre Mario de Andrade" tem um destinatário muito especial : o leitor.
Ao longo de 384 páginas enriquecidas por fotos testemunhamos o nascimento de uma amizade, a partir de uma carta de Mario de Andrade comentando um artigo publicado por Cascudo. E acompanhamos o fortalecimento dos laços, na troca de elogios, gentilezas, favores e, por vezes, puxões de orelha. A fina ironia e a afetividade de Mario, o lado boêmio e bonachão de Cascudo. A crítica honesta sobre a obra do outro, sempre no intuito de valorizá-la. O respeito pela brasilidade, presente nos escritos de ambos. Tudo isso, tendo como pano de fundo acontecimentos culturais e políticos no Brasil da época.
Enquanto Mario escreve: “Luís, eu sou tão feliz! Puxa! Que camaradão tão amigo mesmo de verdade eu arranjei dentro de você”, Cascudo retribui com “Grande abraço, meu amigo, grande abraço. E se V. estiver com a cara limpa um beijo também.”
Em dezembro de 1928, Mario realiza uma viagem etnográfica ao nordeste. Queria conhecer de perto a cultura da região. Em Natal, hospeda-se na casa de Cascudo.  Sente-se tão bem recebido que adota a família do amigo e passa a chamar a mãe deste de “minha mãe daí.” Ao que Cascudo retribui com a mesma atenção: “Toda noite temos um minuto para falar no Mario. Com uma saudade tipo graúdo, seu mano.” Quando nasce Fernando Luís, o primogênito de Cascudo, este é prometido ao amigo como afilhado. Logo passam a se tratar como compadres e as cartas vindas de Natal agora trazem notícias e fotos do menino.
Há singeleza e poesia nas cartas de Cascudo: “Mamãe, papai, Dália, cães e papagaios, livros, jardim, bolo de macaxeira, ares e sombras, bois e nuvens, todos , a uma , perguntam quando é que V. volta a esta casa, a esse quartinho , a sombra destas árvores que são suas?” Não menos doce será a resposta do mano Mario ao compadre: “Uma hospedagem se paga, mas não se paga o sorriso com que sua mãe me olhava, as conversas de seu pai, e todo o resto que foi essa casa pra mim”.
Em dado momento, em 1928, Mario escreve: “Não sei se já te contei mas em dezembro estive na fazenda de um tio e escrevi um romance. Romance ou coisa que o valha, nem sei como se pode chamar aquilo. Em todo caso se chama Macunaíma.” Poucos meses depois, Cascudo responde:” Querido amigo, Em Natal não pude ler Macunaíma. Li, verdade seja, trechos às pressas. O bastante para dizer que V. pode fechar o firo brasileiro. Porque todo Brasil está ali.’
Nas últimas mensagens, já na década de 40, pouco antes do paulista falecer, Cascudo comenta com o “Mario velho” que “não somos padre e sacristão para viver rosnando “amém” quando o outro diz qualquer coisa”. E emenda: “Gostou da Antologia do folclore brasileiro? Fiz o mínimo de “efeito” pessoal . Poucas notas. Apenas para tentar o interesse coletivo”.  Responde Mario ao Cascudete: “Puxa, que livro enorme, quase seiscentas páginas. Mas que trabalhão útil você fez.”
Poder presenciar os bastidores do nascimento de uma obra como Macunaíma, de Mario de Andrade, ou do Dicionário Brasileiro de Folclore, de Câmara Cascudo. Saber direto da fonte as impressões sobre a Semana de Arte Moderna por parte de um de seus maiores ícones, ou acompanhar a produção de um dos mais completos estudiosos de folclore que o Brasil já teve. Tudo isso já valeria a leitura. A obra, no entanto, traz muito mais. É só abrir ao acaso, que lá estarão o compadre Mario e o Cascudinho a nos brindar com tiradas inesquecíveis, doces, irônicas, entusiasmadas ou melancólicas. Parafraseando Câmara Cascudo, “o Brasil está ali”.

(Andrade e Cascudo em Natal - Foto retirada do site Overmundo)











Câmara Cascudo e Mário de Andrade: Cartas, 1924-1944, organizado por Marcos Antonio de Moraes (Global).

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Um menino chamado Lobato.

Desde a publicação do primeiro livro, Urupês, em 1909, Monteiro Lobato fez parte da vida de várias gerações de brasileiros, que cresceram lendo suas histórias, especialmente as aventuras da impagável turma do Sítio do Pica-pau Amarelo. Cada um de nós, seus leitores, temos um personagem do coração: a espevitada e encrenqueira boneca de pano Emília que engoliu uma pílula e abriu “a torneirinha de asneiras”. A boa e sensata Vovó Benta que acolhia em seu sítio os netos, o corajoso Pedrinho e Lucia, a menina do Narizinho Arrebitado, que mais tarde tornou-se simplesmente “Narizinho”. A simplória e bonachona Tia Nastácia, que cuidava de todos com esmero e que, vira e mexe, era envolvida nas trapalhadas da garotada. O sábio Visconde de Sabugosa, a espiga de milho que falava feito adulto e tinha uma inteligência enciclopédica. E o roliço Rabicó, leitão que virou Marquês, graças a uma “invencionice” da Emília.
Com as histórias do Sítio do Pica Pau Amarelo, que começaram a ser publicadas na década de 20, Lobato pretendia criar aventuras com figuras bem brasileiras, recuperando costumes da roça e lendas do folclore nacional. Nas publicações seguintes, passou a misturar lendas brasileiras com elementos da literatura universal, mitologia grega, quadrinhos e cinema.
Saindo das páginas dos livros, a turma do Sítio ganhou vida na TV em diversas ocasiões, inspirando cinco séries: duas na TV Tupi, nos anos 50 e 60; uma na TV Cultura de São Paulo, em 1964, e as duas últimas pela Rede Globo. A primeira, entre 1977 e 1986, e a segunda, de 2001 a 2007.
Incluo-me nessa lista de leitores e telespectadores do Sítio. O primeiro contato com a obra de Lobato aconteceu aos 12 anos, por intermédio de meu padrinho Wellison, que me apresentou à coleção de livros que lera em sua infância, da Editora Saraiva. Fascinada, depois de pegar alguns emprestados, passei a comprar os meus próprios exemplares numa papelaria perto de casa (edições simples que guardo até hoje). Eram os anos 70. Maravilhada com as peripécias que eu via sair da mente daquele homem menino, acabei fabricando minha própria Emília de pano, com corpo laranja e vestido de bolinha. Feia como ela só.
Já naquela época, a vida num sítio, cercada de natureza e bichos e a linguagem rebuscada de Lobato não combinavam muito com a minha infância. Que dirá a dos meus filhos, em plena era da internet? Mas a obra desse escritor tão querido ajudou a despertar em mim o prazer pela leitura. E certamente assim o foi para milhares de brasileiros.
Há pouco tempo a obra desse aclamado autor começou a ser revisada - e criticada - sendo considerada racista a forma como tia Nastácia era retratada em suas histórias, particularmente em As Caçadas de Pedrinho.
Não pretendo julgar um homem que também era fruto de sua época e muito dessa época retratou. Prefiro lembrar aquele que foi o maior escritor infantil brasileiro de todos os tempos e que tanto nos deu em alegria, imaginação e sonho. O autor que, numa época em que os livros brasileiros eram editados em Paris ou Lisboa, passou a editar no Brasil, criando inovações nos livros didáticos e infantis. Que deixou obras como Urupês, Jeca Tatu, Reinações de Narizinho, Serões da Dona Benta e A Chave do Tamanho, só para citar alguns. O homem à frente de seu tempo que entrou de cabeça na Campanha do Petróleo, defendendo a exploração da nossa riqueza somente por empresas brasileiras. O visionário que dedicou sua vida e seu trabalho à luta pela preservação dos nossos valores culturais e riquezas naturais. E que foi pioneiro na defesa de nossas florestas, de nossos índios e de nossos bichos.
Deixemos que Emília, Narizinho, Tia Nastácia, Pedrinho, Dona Benta e cada personagem presente na obra de Monteiro Lobato prestem por nós, uma homenagem a esse menino que nasceu há 129 anos. E que deu a tantos brasileiros uma maravilhosa lembrança da infância.



José Bento Monteiro Lobato, nasceu em 18 de abril de 1882, em Taubaté (SP) e faleceu em 1948.