domingo, 13 de setembro de 2009

O silêncio de Capitu.


Na primeira vez em que li Dom Casmurro eu tinha uns 11 ou 12 anos. Quando o recebi como presente de uma tia, a capa com uma linda moça de cabelos negros e vestido de época, eu, que até então, só tinha lido livros infantis, não me deixei seduzir logo de cara. Passou um ano, comecei a lê-lo. Era ainda uma menina e me diverti com o amor inocente de Bentinho e Capitu. Marcou-me o trecho em que ela escreve no muro o nome dos dois - Bento e Capitolina - envolvidos por um coração. E o jeito desajeitado com que ele tentara fazer tranças em seu cabelo, em sua paixão de menino.
Cabe aqui falar para quem não leu, que Dom Casmurro retrata a história de amor entre Bento Santiago e Capitu, que começa na infância e se concretiza no casamento e nascimento do filho, Ezequiel. E que o tema central do livro será a dúvida que paira na mente obsessiva de Bentinho quanto à paternidade do menino.
Não me lembro se, na época, compreendi os ciúmes de Bentinho e o drama da separação, mas, certamente, encantei-me com o estilo peculiar do Machado.
Mais tarde, aos 15, 16 anos, o livro fez parte do cronograma da escola. Embora aquelas leituras obrigatórias deixassem os alunos enfastiados, eu até que gostava. E reler Dom Casmurro foi ainda mais prazeroso. Reforcei o encantamento pela escrita do Bruxo do Cosme Velho e a riqueza de detalhes com que ele descrevia seus personagens:

"Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas."
"Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos".

Mais amadurecida, compreendi melhor a angústia de Bentinho, sem deixar de me indignar com sua acusação, aos meus olhos injusta, de ter sido traído por Capitu (acusação esta, sempre insinuada, jamais proferida).
Muitos anos depois, já adulta, retomei o romance. Estava tudo ali: os capítulos curtos, as palavras - mais do que escritas - esculpidas. As dezenas de frases que viraram citações clássicas, atemporais. A descrição de um Brasil que não existe mais, como se fosse o dia de ontem. O amor juvenil de Bento e Capitu ganhando cores ainda mais escuras: paixão inocente virando angústia, desconfiança, neurose, lágrimas. "Capitu traiu ou não traiu Bentinho?"
Cheguei a escrever um conto em que a personagem tinha "olhos de Capitu sem Escobar". Os tais olhos de ressaca. Talvez eu seja uma das poucas a defender a moça de Matacavalos. Para mim, Capitu não traiu Bentinho. Cheguei enumerar item por item minha "defesa de Capitu", pois nem ao menos esse direito, ela recebeu. Submeteu-se ao exílio e ao silêncio (dos inocentes?) e não mais retornou ao Brasil. O silêncio de Capitu, na verdade foi o silêncio de Machado. Jamais disse nem que sim, nem que não. Mas, segundo dizem, todas as dicas e respostas estão presentes no romance. Talvez a explicação para o sucesso de Dom Casmurro venha justamente do fato de o autor ter deixado um véu sobre a questão. Tivesse o romance sido lançado em tempos de Big Brother, teria sido assediado por jornalistas, microfone em punho, a questionar "Traiu ou não traiu?" até que o mistério fosse desvendado. Felizmente, mais de um século depois, a essência de Dom Casmurro permanece intocada.
Quando a Rede Globo colocou no ar a minissérie Capitu, senti-me incomodada. E se a obra de Machado fosse desvirtuada, banalizada, transformada em produto a ser consumido e descartado? Contudo, assisti a alguns capítulos. A história, contada em forma de ópera rock (remetendo a Maria Antonieta, de Sofia Coppola), traz uma Capitu exuberante, figurino maravilhoso e direção vibrante. As falas foram respeitadas, mas um não sei o quê de suntuosidade me incomodou. A Capitu do livro era esperta, vivaz, porém simples, quase feinha, com suas tranças e seu vestido de chita. Não essa sedutora glamorosa retratada na série. A casa de Dona Glória, no livro, modesta e austera, na trama televisiva tornou-se luxuosa e colorida. Um personagem esquisito, meio andrógino, faz as vezes de narrador. Seria o José Dias? Grandíssimo sacrilégio, diria ele. Gostar, não gostei. Mas não foi de todo mal. No entanto, prefiro reler, de tempos em tempos aquele que se tornou meu livro preferido. Que mudou para sempre minha forma de entender a literatura e me fez descobrir como certos escritores têm parte com os deuses. Machado de Assis, como prova sua obra, não era humano. Situava-se numa categoria acima. Esse brasileiro pobre, mulato, autodidata, criou um estilo que muitos seguem e nenhum consegue igualar. Mais que o Bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis é hoje um dos maiores gênios da literatura mundial. Capitu teria concordado.