quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Memórias de uma Gueixa.

“Minha mãe dizia que eu era como a água. A água abre caminho mesmo através da rocha. E diante de algum obstáculo, ela encontra outro rumo”. Assim a personagem principal e narradora de "Memórias de uma Gueixa" se descreve nas páginas iniciais do livro.
Se para nós, ocidentais, causa estranheza o estilo de vida e tradições orientais como o costume das gueixas,  este livro desmistifica o assunto, ao mesmo tempo em que o envolve numa aura de romantismo e delicadeza.
Escrito na primeira pessoa, como se fosse uma narrativa a um interlocutor imaginário, esta é a história de Chiyo, uma menina pobre que, aos 9 anos, é negociada por um conhecido de sua família e levada para um Okya, templo de preparação de gueixas. Era o ano de 1929 e sua vida irá mudar para sempre.
Embora o livro se apresente em forma de memórias de uma das mais famosas gueixas do Japão, por trás dessa alma feminina e oriental está (surpreendentemente) um homem - e norte-americano.  Definido na contra-capa como “uma descrição minuciosa da alma de uma mulher já apresentada por um homem”, o romance de Arthur Golden cumpre o que promete.
A saga de Chiyo, que passa a se chamar Sayuri e torna-se uma das mais influentes gueixas de sua época, assemelha-se a uma história de Gata Borralheira que se transforma em Cinderela, não da noite para o dia, porém a muito custo e dor.
Passado o choque inicial diante da nova realidade, a menina empreenderá uma mal-sucedida tentativa de fuga e sofrerá várias humilhações e perseguições por parte de uma gueixa um pouco mais velha, Hatsumono, que quer impedir a todo custo sua ascensão. Em pouco tempo, Sayuri percebe que não vale a pena lutar contra seu destino e decide não apenas aceitá-lo, mas lutar por ele.

“Naquele momento eu deixei de ser uma menina com uma vida vazia para ser alguém com um propósito. Percebi que ser gueixa poderia me trazer uma coisa: um lugar no mundo”.

No desenrolar da narrativa, ela aprende as artes da dança e da música, do vestuário e da maquilagem; o domínio do shimizen (uma espécie de bandolim); a maneira de servir saquê, revelando apenas um ponto do lado interno do pulso; o jeito de andar, a forma de olhar e sorrir, visando cativar os homens a quem tem o papel de entreter e divertir. Com os anos, torna-se uma bela mulher “de olhos azuis-acinzentados”.
Mesmo que tenhamos restrições a respeito da tradição japonesa, o texto suave, terno e espantosamente feminino de "Memórias de uma Gueixa" nos leva a torcer pela felicidade de Sayuri, que passa por muitos sacrifícios em sua preparação, inclusive um odioso episódio em que sua virgindade é colocada em leilão: o mizawe.
Nessa trama de Cinderela oriental não faltará a paixão, reservada a um homem que ela vê pela primeira vez na infância e que, tempos depois, descobre ser o presidente de uma grande empresa japonesa. Objeto de paixão platônica por parte de Sayuri, ele será chamado de Presidente até o fim do livro. Não faltam também benfeitores: o horrendo Nabu, sócio do Presidente, herói deformado pela guerra, cliente fiel e amigo dedicado de Sayuri. E a gueixa Mameha, que se torna sua irmã mais velha (professora nas artes de entreter os homens). Compenetrada, a menina irá aprender bem a lição, transformando-se numa confiante e bem-sucedida gueixa. Mas será que, como a maioria das gueixas, irá renunciar ao amor? A resposta está nas páginas finais do romance.
Sobre o autor pode-se dizer ao menos um pró e um contra. O pró é que seu texto delicado, coberto de metáforas e representações poéticas, desvenda aos leigos o mundo das gueixas e rompe um pouco com o preconceito associado ao tema, além de prender a atenção do leitor com uma trama cheia de aventuras. O contra é o que foi revelado mais tarde: o livro é baseado em pesquisas e entrevistas do autor com genuínas gueixas japonesas, sobretudo uma das mais famosas, Mineko Iwasaki que acusou o autor de “roubar” sua história e inserir no romance algumas inverdades a respeito do costume nipônico. Pouco tempo depois, Mineko Iwasaki escreveu suas próprias memórias, intituladas “Minha vida de gueixa”.
Entre prós e contras, não deixa de ser uma delícia ler o texto de Golden.
Como diz o autor, na boca de Sayuri, “A gueixa é uma artista de um mundo imaginário. Ela dança. Ela canta. Ela o entretém. O resto é escuridão. O resto é segredo".

Livro: Memórias de uma Gueixa

Autor: Arthur Golden
Tradução: Lia Luft
Editora: Imago

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A(s) Vida(s) de Gertrude Stein.

Considerada um dos grandes nomes da literatura modernista, a escritora norte-americana Gertrude Stein (1874-1946) talvez tenha ficado mais conhecida por sua personalidade polêmica do que propriamente por sua obra. Com uma escrita original e, de certa forma, hermética, alguns de seus romances, como "Três Vidas" e "A Autobiografia de Todo Mundo" foram mais aclamados pela crítica do que pelo grande público. No entanto, não há como negar seu papel como mentora intelectual de jovens artistas e escritores do início do século XX, como Pablo Picasso, Henri Matisse, Guillaume Apolinnaire e Ernest Hemingway.
Com o livro "Duas Vidas: Gertrude e Alice", a jornalista tcheca Janet Malcom nos permite ir além dos escritos de Stein, para conhecer mais sobre sua vida, sua personalidade e sua relação com a companheira de décadas, Alice B. Toklas (1877-1967).
Dividido em três partes, o livro é uma reunião de ensaios originalmente publicados na revista The New Yorker. Com seu estilo ácido de escrever, Janet Malcom parte de um questionamento: "Como um casal de judias lésbicas e idosas conseguiu sobreviver às perseguições nazistas na França, permanecendo incólume durante toda a Segunda Guerra?"
A partir daí, por meio de pesquisas e entrevistas com biógrafos, amigos e especialistas na obra de Gertrude Stein, monta o quebra-cabeça do que seria a personalidade da escritora, que se autodenominava “um gênio”.
Filha de um rico imigrante judeu-alemão, era a caçula de cinco irmãos e perdeu a mãe aos 14 anos. Poucos anos mais tarde, com a morte do pai, o irmão mais velho, Michael, assumiu os negócios da família e Gertrude passou a viver de renda. Em 1903, parte com o irmão Leo para Paris e com ele começa a se interessar  e colecionar obras de arte moderna.
Teria início aí a lenda da casa da Rue Fleurs, 27, que virou ponto de encontro de artistas e intelectuais, muitos deles, expatriados americanos, que ela chamava “the lost generation”.  A recusa do irmão em reconhecer sua genialidade, fez com que os dois se afastassem para sempre. Quando Leo foi embora, Alice já havia entrado na vida de Gertrude.
Era um casal estranho. Em suas memórias, Mabel Rodge revela que "Gertrude era prodigiosa, quilos e quilos e quilos empilhavam-se em seu esqueleto". Quanto a Alice, "era franzina e morena, com lindos olhos cinzentos pesados.” A maioria dos amigos considerava Gertrude fascinante e charmosa, enquanto Alice era feia e apagada.
Em suas pesquisas, Janet descobre uma Gertrude acostumada a “ser cuidada por pessoas que sentiam-se incapazes de agir de outro modo. E a maior de todas as abelhas operárias era Alice Toklas”. Na relação desigual que mantinham, Gertrude se ocupava de sua genialidade e Alice, dos afazeres domésticos. Enquanto Stein deixava escorrer seus textos para o papel, era a companheira quem os revisava e datilografava. Diferenças à parte, é certo que as duas nutriam uma grande afeição mútua.
Um dado explorado no livro é a amizade de Stein por Faÿ Bernard, um professor colaboracionista nazista, mais tarde condenado à prisão perpétua por envolvimento na prisão, deportação ou morte de milhares de maçons durante a ocupação da França pelos alemães. Bernard foi fundamental para garantir a permanência das duas judias em Paris, sem serem importunadas. Ao que parece, elas não tinham ideia da gravidade das ações do amigo.
Se o retrato do artista se faz pela sua obra, em "Duas Vidas" Janet também se ocupa de analisar a escrita de Gertrude Stein. Para isso, consulta especialistas, como Edward Burns, William Rice e Ulla Dydo. Por sugestão destes, debruça-se sobre um de seus mais famosos livros, "The Making of Americans", um romance gigantesco de 925 páginas, que mesmo alguns amigos de Stein não conseguiram ler. Malcom o define como um livro “estranhíssimo” o qual, à medida que avança, “parece-se menos com um romance e cada vez mais com um pântano onde escritora e leitor se afundam”.
Os textos experimentais de Stein eram considerados densos demais, o que dificultava o interesse das editoras. Segundo Malcom, “ela não sabia inventar” e "escrevia quase que somente de suas próprias experiências". A aceitação pelo grande público só aconteceria aos 51 anos, com a publicação de "Autobiografia de Alice B. Toklas", que escreveu dando voz à sua companheira.
Com a morte de Gertrude de câncer, em 1946, Alice “cuidou do santuario da lenda literária e pessoal de Stein com a devoção de um cachorro à sepultura de seu dono”. "A lembrança de Gertrude é toda minha vida" escreveu ela a Donald Gallup, em 1947.
"Duas Vidas: Gertrude e Alice" apresenta um texto instigante, fruto de  um jornalismo investigativo da mais alta qualidade. Aos fãs de Gertrude Stein, deve ter incomodado bastante. Mas, para quem conhece pouco sobre sua vida e obra, desperta ainda mais a curiosidade de lê-la e (tentar) compreendê-la.

"Duas Vidas: Gertrude e Alice" - Janet Malcom.
Editora Paz e Terra.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Quase Memória, Quase Romance.

No ano de 1995 um pacote é deixado na recepção do hotel que Carlos Heitor Cony costumava frequentar. Alguém havia pedido que lhe fosse entregue em mãos. Imediatamente, ele reconhece no embrulho, na letra sobrescrita e no nó cuidadoso, traços muito familiares.
"Era a letra de meu pai. A letra e o modo. Tudo no embrulho o revelava, inteiro, total. Só ele fazia aquelas dobras no papel, só ele daria aquele nó no barbante ordinário (...)”
Porém, uma coisa não fazia sentido: seu pai, o jornalista Ernesto Cony Filho havia falecido dez anos antes.
Desse misto de lembrança e ficção, fantasia e emoção, ironia e carinho nasceu o romance Quase Memória.
Levando para casa o pacote, o autor dedica-se a observá-lo, sem coragem de abri-lo. "Queria apenas ficar sozinho, não exatamente para abrir o envelope, mas para pensar no assunto, embora se tratasse de assunto impensável".
É assim que aquele pacote fechado abre um baú de recordações.
Um aroma presente no embrulho o remete a um pote de brilhantina colocado pelo pai em suas bagagens de seminarista e que fora confiscado no primeiro dia pelo padre Cipriano, sob a alegação de ser "um emblema de luxúria".
Logo mais, ele sente no pacote o cheiro de manga, fruta pela qual seu pai era "esganado". E junto com este, lhe vem a lembrança do dia em que seu Ernesto, tentando roubar mangas do cemitério (segundo ele, as melhores que existiam), acaba se esborrachando em cima de uma carroça de flores, diante de parentes e amigos do morto. "Eu olhava para o chão, querendo ser enterrado também, junto com a minha vergonha."
Entre cheiros e imagens, o filho reconstitui, carinhosamente, momentos marcantes vividos com o pai. A técnica de fazer o embrulho, a perfeição do nó no barbante, o cacoete constrangedor que o levava a golpear o ar, cinco a seis vezes ao dia, como a se proteger de um ataque invisível. Sua sede de viver, de acordar todos os dias pensando em fazer algo novo. O costume de contar casos como se tivessem mesmo acontecido. E a sutileza de fabricar, com o máximo de apuro, qual fosse obra de arte, os balões que soltava aos céus em Noite de São João.
Vender rádios, fabricar perfumes, consertar antenas, criar galinhas. Fosse o que fosse, tudo o que Ernesto fazia, era com entusiasmo. E a cada nova empreitada, ânimo renovado. "Era do tipo que recebia um bom-dia como uma homenagem."
Durante a leitura das peripécias de Ernesto e seu filho mais novo, descobrir o que é verdade e o que é imaginação, torna-se desnecessário. Mais importante é entender que o remetente sem nome nada mais é do que a memória filial.
Ao fim desse "quase-romance", o pacote que encerra tantas lembranças, permanece intacto. E, ao que parece, cumpre sua missão, de restabelecer um elo entre pai e filho, uma derradeira aventura, um último segredo.

Quase Memória
Carlos Heitor Cony
Editora: Companhia das Letras
Ano: 1995.
O romance marcou a volta de Carlos Heitor Cony, depois de mais de vinte anos afastado da literatura. Conquistou, em 1996, os prêmios Jabuti de Melhor Romance e de Livro do Ano, pela Câmara Brasileira do Livro.

domingo, 19 de setembro de 2010

Todos os Nomes de Saramago.


Um certo Senhor José, já chegado aos 50 anos, sem família, sem amigos, sem grandes ambições.
Este é o principal personagem do romance Todos os Nomes, do genial autor português José Saramago. Ironicamente, o único no livro que é efetivamente nomeado (os demais são identificados por expressões como “a senhora do rés do chão direito”, “a moça desconhecida” ou “o marido ciumento”).
Funcionário antigo da Conservatória Geral do Registro Civil, Senhor José mora numa casa contígua à repartição, que possui uma porta de acesso direto (mantida sempre fechada, por ordens superiores). Solitário e melancólico, preenche seus dias de folga colecionando recortes de jornais e revistas sobre a vida de pessoas famosas: políticos, atores, músicos, banqueiros ou assassinos.

Certo dia, tem a ideia de acrescentar a esses recortes dados mais precisos: o nome do pai, da mãe, a data do batizado. Como funcionário do Registro Civil, tem a faca e o queijo na mão: basta abrir a porta proibida. Decide entrar no prédio na calada da noite para recolher as preciosas informações.
"Imagine quem puder o estado de nervos, a excitação com que o Senhor José abriu pela primeira vez a porta proibida, o calafrio que o fez deter-se à entrada como se tivesse posto o pé no limiar dessa câmara onde se encontrasse sepultado um deus cujo poder, ao contrário do que é tradicional, não lhe adviesse da ressurreição, mas de tê-la recusado”.

Da primeira transgressão para as demais, será  um pulo. Quando, em meio aos verbetes surrupiados, aparece por acaso, a ficha de uma moça de 36 anos (uma ilustre desconhecida), ele é tomado imediatamente pelo desejo de descobrir mais sobre a mulher misteriosa. “Saber o nome dos pais, dos padrinhos, a rua, o número e o andar onde ela viu a luz e sentiu a primeira dor”. É esse sentimento que irá promover uma reviravolta em sua vida. "É absurdo, mas já era tempo de fazer algo absurdo na vida".
Por essa obsessão, ele irá mentir, fingir, enganar, correrá riscos, adentrará feito um gatuno a escola onde a menina estudou, visitará a casa onde ela viveu. De funcionário austero, torna-se invasor furtivo da casa (e da vida) alheia. Usando de falsa credencial, irá pressionar os novos moradores a lhe revelarem o que (não) sabem sobre o paradeiro da moça.
“Não seria mais fácil buscar na lista telefônica ?”– sugere a senhora do rés do chão direito.
Mas Senhor José não quer a vitória fácil. Prefere montar o quebra-cabeça (outro passatempo de solitários). E é nessa busca cheia de riscos que ele ganha mais gosto pela vida.
A narrativa de Todos os nomes assemelha-se a uma teia de aranha, onde quanto mais se avança, mais se sente enveredar por caminhos quase sem volta. Como a repartição onde trabalha, a jornada de Senhor José é um labirinto de informações onde é fácil se perder. Semelhante ao fio de Ariadne, acompanhamos a saga do personagem, conduzidos pela escrita singular de Saramago. Feito novelo que se desenrola, mas não desata, ele irá nos prender até o fim. Haverá surpresas nessa busca, lembrando que a vida é feita delas. Caberá ao leitor descobri-las.
Em certo trecho do livro, Senhor José analisa: “Alguns dos que nascem, entram nas enciclopédias, nas histórias, nas biografias, nos catálogos , nos manuais, nas coleções de recortes. Os outros são como a nuvem que passou sem deixar sinal de ter passado, se choveu, não chegou a molhar a terra. Como eu.”
Todos os Nomes é um romance sobre pessoas comuns que, em sua existência, "não chegam a molhar a terra", mas que nem por isso deixam de viver sua história.
 
José Saramago
Publicação: 1997
Editora: Companhia das Letras

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Os Mistérios de Agatha.


“Para ela, era importante que o mundo fosse ordenado, correto, tudo em seu devido lugar: o universo de sua infância. Preocupava-se com a aparência, embora a sua própria não fosse das mais agradáveis. Aos 40 anos começou a engordar e transformou – se numa matrona, de seios fartos e quadris avantajados. Os dentes eram ruins e, por isso mesmo, nunca aparecia sorrindo nas fotografias”. Quem conta isso é Rosa Montero no livro A Louca da Casa. E a curiosa personalidade retratada é Agatha Christie, uma das maiores escritoras de romance policial de todos os tempos, conhecida como “A Rainha do Crime”.
Hoje, 15 de setembro, completam-se 120 anos do nascimento dessa escritora única,  nascida Agatha Mary Clarissa Christie. Tendo crescido durante a época vitoriana, não chegou a freqüentar a escola. Embora tenha aprendido a ler sozinha, aos quatro anos, memorizando palavras, foi educada em casa. Passou a infância e adolescência lendo histórias de detetive, como as de Sherlock Holmes e de autores como Edgar Alan Poe. Depois inventava mistérios com sua irmã Madge.

Um desafio de Madge a levou à literatura profissional. Quando esta lhe disse que ela jamais jamais seria capaz de escrever um romance policial, Agatha  levou tão a sério que escreveu “O Misterioso caso Styles", obra que foi publicada em 1920. Desde então não parou mais. 
Foram mais de 80 livros, que venderam mais de 4 bilhões de cópias no mundo. É a autora mais publicada de todos os tempos em qualquer idioma, somente ultrapassada pela Bíblia e por Shakespeare.
Um de seus personagens mais fascinantes é Hercule Poirot (inspirado em um vizinho, de baixa estatura e bigode bem cuidado), cuja característica mais marcante é a ironia. Outra figura popular é a Miss Marple, uma adorável velhinha britânica que vive no campo, mas parece estar sempre por perto quando acontece um crime. 
Conheço Agatha Christie há muito, muito tempo, desde criança, talvez.
Desde então tenho fases de lê-la aos montes, um livro atrás do outro, envolvida nas histórias, nos suspenses, nos personagens exóticos e engraçados, nas aventuras de Hercule Poirot e Miss Marple.
Depois, acomodados nas prateleiras, seus livros (muitos) esperam que se acenda novamente meu desejo de  viajar pelas tramas da autora.
Um desses momentos aconteceu este ano, em que li, em um mês, cinco de seus livros: "Convite para um Homicídio", "Treze à Mesa", "A Mansão Hollow", "O homem do Terno Marrom" e "Um Brinde com Cianureto". Uns gostei mais do que outros, mas analisando criticamente, percebi ali, não apenas casos mirabolantes de assassinatos, envenenamentos, cenas macabras ou dramáticas; percebi um estilo próprio e uma habilidade para contar histórias que foge à narrativa pura e simples. Não existe em seus livros apenas um caso a ser contado, mas descrições deliciosas dos personagens, dos lugares, dos hábitos adotados na época. Ela realmente nos faz viajar. Peguei-me por várias vezes analisando um por um os personagens para descobrir quem seria o assassino. Na maioria das vezes, não consegui. Mas esta é justamente a graça de se ler um romance policial (gênero no qual ela é imbatível): a surpresa que nos reserva o final.
Certa vez, ela revelou que começava seus livros pelo assassinato. Depois estudava a forma como foi cometido, para espalhar pistas verdadeiras e falsas no decorrer dos capítulos. Outra dica da autora: o importante em um romance policial é que o detetive não deve saber nunca mais do que o leitor.
Uma inglesa no verdadeiro sentido da palavra, graciosa e gentil, porém contida, reservada e misteriosa, é assim que imagino Agatha. Esse post é uma homenagem aos 120 anos de nascimento dessa escritora tão singular que tem lugar certo na literatura mundial. E na minha estante , com certeza. Obrigada, Agatha.

Agatha Christie faleceu em 12 de janeiro de 1976.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Brando. Canções que Minha Mãe me Ensinou.


Não sou da geração que vibrou com o jovem Marlon Brando despontando na tela. A bem da verdade, o primeiro filme que assisti dele foi Superman, onde ele fez uma curta aparição como Jor El. Só assisti "O Último Tango em Paris" muitos anos depois de lançado, quando tive idade para ver a tal cena da manteiga. Na época, achei o filme meio chato, e Brando, aos 48, charmosíssimo. Só mais tarde, por meio de filmes como "O Poderoso Chefão", "Sindicato dos Ladrões" e "Um Bonde Chamado Desejo", pude comprovar o genial intérprete que ele foi.
Se o mito Marlon Brando, todos conhecem, Canções que minha mãe me ensinou, escrito com Robert Lindsey, nos traz a oportunidade de conhecer não só o homem por trás da lenda, mas também a criança que antecedeu o homem.
Com 370 páginas e recheado de belas fotos em preto e branco, a maioria de seu  acervo pessoal, o livro é um relato honesto, sem máscaras ou deslumbramento, de um dos mais respeitados atores de todos os tempos.
Abrindo mão de falsos pudores, ele expõe não só seu lado bonitinho, mas também seus erros, fraquezas e medos. Sua vida em família. O alcoolismo da mãe. A frieza do pai. O amor pelas irmãs. A sensação de solidão que o acompanhou durante toda a infância e adolescência, assim como desejo de ser amado. O desprezo que tinha pelo glamour de Hollywood e o senso de realidade com que encarava a profissão de ator.
Marlon Brando Jr. nasceu em 3 de abril de 1924, em Omaha, Nebraska, EUA,  filho da ex-atriz de teatro Dorothy Pennebaker e de Marlon Brando Sr., irmão de Jocelyn e Frances, a quem ele chamava Frannie. Aliás, todos na casa tinham apelidos e até quando já era famoso, a família o chamava simplesmente Bud.
É o menino Bud que parece ganhar vida, em certa fala do livro: "Quando minha mãe bebia, o hálito dela adquiria uma doçura que o meu vocabulário não consegue descrever. Era um casamento estranho, a doçura de seu hálito com o meu ódio do fato de ela beber".
O pai, caixeiro-viajante, passava muito tempo na estrada e não era dado a fidelidade. Seu jeito agressivo e distante marcou Brando por toda a vida. "Boa parte das lembranças que tenho de meu pai são aquelas em que fui negligenciado. (...) Nunca fui recompensado por um comentário, um olhar ou abraço dele."
Sempre mal na escola, foi mandado para a Academia Militar Shattuck. Tinha 16 anos e detestou o ambiente, claro. "Fazia qualquer coisa para evitar ser tratado como um número". O ódio pelo exército era proporcional à falta que sentia dos pais, que raramente lhe escreviam. "Quando olho para as cartas que enviei de Shattuck vejo uma criança ansiosa e solitária que nunca teve uma grande infância, que precisava de afeto e segurança".
Crescendo num lar tão frágil, Brando poderia facilmente ter se perdido no mundo. Quis o destino, para nossa sorte, que ele se tornasse ator. Convidado por Duke Wagner, chefe do departamento de inglês de Shattuck, fez um teste para a peça A message from Khufu. Foi aprovado. "A não ser nos esportes era a 1ª vez que alguém me dizia que eu fizera algo bem-feito".
Quando foi expulso da escola militar, Duke lhe disse: “Não se incomode, Marlon, vai dar tudo certo. Eu sei que o mundo vai ouvir falar de você.”
Em 1943, parte para Nova York, disposto a tentar ser ator. Descobre o gosto da liberdade. Toma o primeiro porre, dorme na calçada e perde a virgindade com uma vizinha de sua irmã chamada Estrelita Rosa Maria Consuelo Cruz.
Na Nova Escola de Pesquisa Social, tem aulas com professores judeus que apresentam-lhe “um mundo de livros e idéias” que ele nem sabia que existia. Estuda com Stella Adler, que levara para os EUA a técnica do Teatro de Arte de Moscou. Segundo Brando, Adler deixou um impressionante legado: “Praticamente todo o modo de interpretar do cinema atual foi influenciado por ela.”
A atuação na peça de Tenesse Williams "Um Bonde Chamado Desejo" foi um passo para o sucesso que viria. Mais tarde, ele participa da versão cinematográfica da peça, sob a direção de Elia Kazan e assim, conquista Hollywood. Fez inúmeros filmes, foi indicado ao Oscar diversas vezes e ganhou dois (um deles, devidamente recusado por motivos politicos).
Ator extremamente intuitivo, foi um dos primeiros a adotar um estilo realista de interpretação. Muitas vezes reescrevia suas falas, cenas, o filme inteiro. E conseguia torná-los melhores.
"Quando eu murmurava minhas falas em alguns papéis, deixava os criticos confusos. Fiz muitos papéis em que não murmurei sequer uma sílaba, mas em outros fiz isso de propósito porque é assim que todo mundo fala na vida diária".
Sem sucumbir ao brilho de Hollywood, ele falava a respeito de sua profissão: "é só um jeito de ganhar dinheiro". "Eu tive sorte porque me transformei em ator no início de uma época em que este ofício estava ficando mais interessante."
Sobre alguns atores com quem conviveu, é honesto e sarcástico ao mesmo tempo: "Eram produtos para o consumo. Representavam a si mesmos, mais ou menos nos mesmos papéis. Clark Gable era sempre Clark Gable em qualquer papel. Humphrey Bogart sempre representava ele mesmo".
Sobre Vivien Leigh com quem contracenou em "Um Bonde Chamado Desejo": "Como Blanche (sua personagem no filme), ela dormia com todo mundo e começava a se desgastar ao máximo, física e mentalmente". A respeito de Marilyn Monroe: "era sensível, incompreendida, tinha uma inteligência emocional muito forte". Tiveram um caso até 1962, quando ela morreu.
Sobre o amigo Montgomery Cliff, que conheceu em "Os Deuses Vencidos": "Era muito tenso e tinha muito charme, além de uma intensidade emocional muito forte. (...) Passei horas tentando convencê-lo a parar de tomar drogas e bebidas". Em vão. Cliff morreu em 1966 aos 46 anos.
Ao falar de "O Selvagem", um de seus maiores sucessos, Brando admite: "Os jovens estavam procurando um motivo - qualquer motivo - para se rebelarem. Eu estava apenas por acaso no lugar certo e na hora certa (...)."
Espantosamente sincero, confessa em um trecho do livro: "A fama tem sido a maldição de minha vida e por mim a teria desprezado de bom grado". "A não ser pelo dinheiro, será que eu gostei de ser astro de cinema? Acho que não".
Nos intervalos entre os filmes, engajou-se em causas sociais. Empenhou-se na defesa de minorias (ou maiorias) desprezadas. Na luta pelos direitos civis dos negros e dos índios norte-americanos. "Quando fui indicado pela minha atuação em "O Poderoso Chefão", pareceu-me um absurdo comparecer à entrega dos prêmios. Festejar uma indústria que vinha deturpando e difamando sistematicamente os índios americanos há 60 anos (...)."
Ao mesmo tempo, nunca deixou de se divertir com muitas mulheres e raros amigos. Mais velho, comprou a ilha paradisíaca de Teti´aroa, no Tahiti, que se tornou seu refúgio permanente quando não estava atuando. "Se algum dia cheguei perto de encontrar a verdadeira paz, foi na minha ilha, entre os tatitianos". Teve mulheres diversas, a maioria do tipo exótico, e nove filhos reconhecidos. O que a carreira lhe trouxe em glórias, a vida lhe deu em tragédias pessoais. Afora a infância turbulenta e o relacionamento com o pai, a quem só perdoou no fim da vida, seu filho mais velho Christian (com a atriz Anna Kashfi)  foi preso nos anos 90, por assassinar o namorado da irmã, Cheyenne (com a taitiana Tarita Teriipaia) que, anos depois suicidou-se. Ninguém imaginaria desfecho mais cinematográfico.
Com sua personalidade instigante, Marlon Brando deu vida a personagens inesquecíveis. Sua marca está presente no jovem sem esperanças de "Sindicato dos Ladrões". No imponente capo Don Corleone de "O Poderoso Chefão". No sedutor de meia-idade de "Don Juan de Marco". No alemão impassível de "Deuses Vencidos". No irlandês brigão de "Um Bonde Chamado Desejo". Talvez (como ele mesmo confessa), exista um pouco dele em cada um desses personagens. Ou talvez, no fundo, mesmo com toda fama e prestígio, ele nunca tenha deixado de ser o menino Bud, de Omaha.

BRANDO. Canções que Minha Mãe me Ensinou.
Editora:  Siciliano.
Ano: 1994

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A Princesa - Maquiavel para mulheres.

Que mulher não se sentiu um dia intimidada diante de um interlocutor, um patrão, um superior, um adversário do sexo oposto? Que mulher não se sentiu levemente em desvantagem por sua sensibilidade extrema num mundo onde os "fracos não têm vez"? Ou mesmo não tentou adotar postura e comportamento ditos masculinos apenas como forma de ser mais respeitada num ambiente profissional?
A respeito dessa questão, a jornalista Harriett Rubin traz boas novas. Depois de estudar a história de algumas mulheres que tiveram poder ou destaque em determinada época, entre as quais Joana D’ Arc, Golda Meir, Anna Akhmatova, Billie Holiday e Jackie Kennedy, traçou uma estratégia que combina as táticas de amor e de guerra. Uma versão feminina de O Príncipe, de Maquiavel.
A Princesa – Maquiavel para mulheres - pretende pôr por terra algumas crenças que nos ensinaram sobre como nos impor e vencer no mundo dos homens. Ao investigar por que o sexo feminino tem dificuldade em alcançar o poder, a autora chega a uma conclusão não muito surpreendente: as mulheres vencem menos porque ninguém quer que elas vençam. Nem mesmo elas. Segundo Rubin, o obstáculo que impede muitas mulheres de conquistar seus objetivos é a tendência à auto-rejeição. Ou seja, no fundo, no fundo, elas lutam contra si mesmas. A simples idéia de vencer traz a sensação de culpa. Alguém aí colocou a carapuça?
A Princesa se divide em três partes: o Livro da Estratégia, o Livro das Táticas e o Livro das Armas Sutis, nas quais conhecemos mulheres guerreiras vitoriosas e outras nem tanto. Analisando seus erros e acertos, Harriet Rubin cria as estratégias e mandamentos que poderão levar a Princesa ao sucesso. Ou: como deve a mulher se comportar para vencer no universo dos homens? A mensagem principal é a seguinte: esqueça o modelo deles. Crie o seu. Assumindo regras criadas por homens, você apenas irá reforçá-las. "Joana D´Arc foi uma estrategista militar brilhante; mas foi também uma camponesa simples, de quem não se esperava muito; é nessa dupla natureza que surge seu poder". Tire vantagem do que você tem de melhor: sensibilidade, intuição, emoção. Use os princípios, não as leis. Não tente combater, mas superar. Não desafie o inimigo, torne-o um aliado. Não declare guerra. Ganhe pequenas batalhas. Prepare-se para ser ferida e, ainda assim, não ferir. Não exercite a vingança, pois ela só dá força ao adversário. Seja vulnerável. Seja aberta quando todos estão fechados. Fale a verdade,  pois, ensina Harriet, “as pessoas são demasiado fracas para resistir a ela.” Comporte-se como se soubesse que a autoridade não tem poder sobre você. E assim será.
Achou interessante? Então, que tal estas: nunca explore a repentina fraqueza do adversário. Mantenha a batalha restrita ao seu horizonte. Deixe seus erros mudarem você. Diga o que deseja – em vez de dar nome a seus ressentimentos ou mágoas. Esqueça a premissa que diz que não se pode ter poder e ser amorosa ao mesmo tempo. Lembre se que “amor é uma forma de poder”.
Prosseguindo a estratégia da Princesa, Rubin ensina: seja conciliadora. "A maioria das pessoas na verdade não quer brigar, elas querem triunfar". Os que entram mais em conflitos são os mais assustados. “Se você se converter em alvo de alguém, o mais provável é que ele esteja assustado com algo que você representa – um poder, um talento”. Parece com aquele chefe que você teve?
Analisando as táticas apresentadas no livro, cheguei a me perguntar se tais idéias não poderiam ser adotadas por qualquer ser humano, homem ou mulher. Falar a verdade, respeitar o outro, não exercer a vingança. São ideais nobres que deveriam ser seguidos por todos. Porém, não estamos tratando de comportamento certo ou errado, mas sim da natureza dos dois sexos. E natureza não se discute.
Sob a ótica de A Princesa, entendi que o homem -registra a História - nasceu para o poder. A mulher precisa lutar para alcançá-lo. O homem deve ser ou parecer forte o tempo todo. A mulher pode ter na fragilidade uma arma poderosa. Homens dificilmente são respeitados se chegam às lágrimas. Mulheres têm na lágrima, muitas vezes, um trunfo. Homens devem vencer a qualquer custo. Não se espera deles nada menos do que a vitória. A mulher, ao longo dos séculos, e ainda hoje, não se importa de conceder ao homem os louros da vitória. O homem é criado para ser lutador. A mulher, para conciliar.
Por isso as táticas de A Princesa são tão bem-vindas, elas ensinam as mulheres a vencerem com o que têm. Ao invés de lamentar o que não possuem. Estimula-as a exercerem seu poder, exigindo o que querem e merecem, usando o que já existe dentro delas.  Em suma, "a arte da Princesa consiste em equilibrar o terror de ser mulher com o fascínio de ser mulher”. Em determinado trecho do livro, a autora lembra: "os homens sempre tiveram medo do poder feminino". Em outro momento, questiona: "Existe alguém mais feroz que uma mulher, transformada em leoa, quando sente seus filhos ameaçados?" A resposta, todos nós sabemos.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

O Vermelho e o Negro, Stendhal

Um jovem, duas mulheres, um destino. Em O Vermelho e o Negro Stendhal conta a história de Julien Sorel, um autentico anti-herói, descrevendo suas lutas, embates, vitórias e derrotas, alegrias e dores, como convém a qualquer ser humano, com defeitos (muitos) e qualidades (algumas).
Filho de um marceneiro e renegado pela família (seu pai achava que ele não servia para nada), Julien tinha inteligência acima da média e memória excepcional. Estudava Teologia (chegara a decorar a biblia em latim) e trocava qualquer  trabalho braçal pela leitura de um clássico, para horror do seu pai que o desprezava ainda mais.

Jovem de extrema beleza e marcante palidez, tinha grande poder de sedução e sabia exercer suas qualidades para conseguir o que quisesse. Sabia que não tendo berço, só possuía dois caminhos para a ascensão social - a farda militar (o vermelho) ou a batina (o negro), por isso aproveita bem as chances que lhe chegam às mãos. Protegido do cura Chèlan, ele é convidado pelo Senhor de Rênal para ser preceptor de seus filhos,  função que desempenha com competência, dividindo o tempo entre as aulas às crianças e um tórrido caso amoroso com a esposa do patrão. Enquanto vive com os Rênal, procura habituar-se aos costumes da corte, aprendendo o manejo social. Porém, mesmo ascendendo, Sorel continuava a ser "um pobre entre os ricos".
Nesse romance psicológico, que serve de pano de fundo para que Stendhal descreva e teça críticas à sociedade parisiense no período que sucede a Revolução Francesa, acompanhamos e nos envolvemos com os dramas e alegrias de um personagem no qual nenhum gesto ou palavra é gratuita. Ao envolver-se com a Senhora de Rênal, inicialmente vê no romance um desafio, uma batalha a vencer, porém, acaba se apaixonando verdadeiramente "Diz a si mesmo; ' Se à meia-noite, não conseguir coragem para segurar a mão dessa mulher que se acha ao meu lado, é claro que não passo de um covarde: subo ao meu quarto e estouro os miolos.'" Quando o romance é rompido, por causa de uma carta anônima, Julien parte para o seminário e mais tarde envolve-se com Mathilde de la Mole, uma jovem rica, que a princípio o rejeita, por ser de classe inferior, porém mais tarde, se deixa conquistar.

"Não, ou estou louco ou ela me faz a corte; quanto mais me mostro frio e respeitoso com ela, mais me procura. Isso poderia ser uma parcialidade, uma afetação;mas vejo seus olhos se animarem quando apareço de improviso. Saberão as mulheres de Paris fingir a tal ponto?" Mais uma vez Julien usara de sua inteligência para conquistar o amor de uma mulher. No entanto, a Senhora de Rênal ainda será crucial em seu destino.

É curioso perceber o quanto existe de humanidade na figura de Julien Sorel. Jovem, ambicioso, autêntico em seus desejos, extremamente sedutor, traiçoeiro em suas ações, porém honesto em suas verdades,  ele é sarcástico, arrogante, mas também se deixa levar por paixões, vive o céu e o inferno ao longo das 489 páginas do romance.* Ao longo dos capítulos sofremos por Julien, torcemos por ele, amamos e odiamos sua figura ao mesmo tempo. Anti-herói por excelência, não é de todo mau, contudo seguramente nada tem de bondade.

O Vermelho e o Negro não é um livro fácil e superficial. É denso, forte, pesado em muitos pontos, porém, a cada capítulo, prende mais o leitor no emaranhado das relações de Julien Sorel que termina condenado pela mesma sociedade que tanto desprezou e cobiçou.

Com essa obra, publicada em 1830, o autor Henri Beyle, mais conhecido como Sthendal, marca o início do Realismo na literatura francesa, deixando de lado toda a tradição romântica.
*Martin Claret, Coleção A Obra-Prima de Cada Autor.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Achei que meu pai fosse Deus (Paul Auster)


Dizem que a vida imita a arte.  Em certos casos, porém, a arte pode imitar ou abastecer-se de realidade. É o que acontece nessa singela coletânea de histórias reunidas por Paul Auster no livro "Achei que meu pai fosse Deus - e outras histórias verdadeiras da vida norte-americana".  
Trata-se de uma compilação de textos escritos por pessoas comuns, relatando "causos", fatos e memórias de suas próprias vidas - bem como de parentes ou conhecidos - das mais variadas regiões dos Estados Unidos.  Convidado a fazer um programa mensal numa rede de emissoras de rádio, o escritor Paul Auster, por sugestão de sua esposa, pediu aos seus ouvintes que enviassem relatos a serem lidos no ar. A única obrigatoriedade era que fossem "histórias verdadeiras que parecessem ficção e que se recusam a obedecer as leis do senso comum". 

Prontamente foi  surpreendido por centenas, milhares de cartas enviadas de todos os cantos do país, por donas de casa, padres, empresários, fazendeiros, veteranos de guerra. Em apenas um ano, recebeu mais de 4 mil relatos. "Tantas vozes de tantos lugares diferentes. Era como se fosse toda a população dos EUA invadindo minha casa."  E o que havia sido uma ideia para um programa de rádio transformou-se em um livro, no qual ele seleciona algumas das melhores histórias enviadas.
Dividido em 10 categorias - Animais, Objetos, Famílias, Sonho, Morte, etc - o livro reúne relatos comoventes, alguns quase pueris, outros fantasiosos e mesmo assustadores, contados por vozes reais, sem preocupação literária, a não ser por uma cuidadosa edição realizada por Auster. Um a um, os personagens falam de suas vidas, ou de pessoas próximas, revelando um fato extraordinário, um momento incomum, como se estivessem sentados na varanda de suas casas. 
Descobrimos, assim, como a aliança de ouro da mãe se transformou no primeiro par de calças que o jovem John Keith, da California, usou na vida. Divertimos-nos com a  história Tony Forwell, de Kentucky, cujo pai tinha um nariz que controlava sua vida. E nos comovemos com a  amizade de 62 anos entre Beth Coff, de Nova York e Jean, que se encontraram apenas duas vezes na vida: a primeira, numa viagem de trem, quando trocaram endereços para  correspondência - e a segunda, seis décadas depois, já octogenárias, viúvas e realizadas. 
Podemos imaginar a cena hilária de Nancy Wilson, de Nova Jersey que, ao nadar nua num lago, perdeu as roupas e, literalmente, atravessou a porta de nylon de uma casa próxima, desabando diante do olhar atônito dos residentes. Há também narrativas intrigantes como a da avó de Martha Duncan, do Maine, que morreu sufocada num incêndio em sua casa. No armário do salão dos fundos, totalmente destruído pelo fogo, a única roupa intacta era o vestido branco que a velha senhora reservara, há anos, para ser usado em seu funeral. 

Impressionante? Talvez. Mas não há dúvidas de que a vida possa, em diversos momentos, superar a arte. E pessoas comuns recebem provas disso todos os dias. 
Com suas narrativas simples, humanas e despretensiosas, "Achei que meu pai fosse Deus" (título que advém de um dos textos do livro) é uma leitura que enriquece.


Abaixo texto publicado na Veja On Line sobre o livro: http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/230205/trecho_pai.html

Companhia das Letras, 400 páginas, organizado pelo escritor norte-americano Paul Auster.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

O Castelo de Vidro.

Jeanette Walls é uma bem-sucedida jornalista de uma revista de Nova York. Mas por trás desse presente de sucesso há um passado perturbador que ficou por décadas escondido até que ela resolveu abri-lo nas páginas de um romance autobiográfico. A partir daí, somos transportados a uma infância repleta de fantasias mas nem um pouco fabulosa, onde Jeanette e seus irmãos, Lori, Brian e a caçula Maureen passam por inacreditáveis peripécias para sobreviverem às loucuras e negligências de pais nada convencionais. Rex Walls era um intelectual brilhante mas escritor fracassado, que vivia quase sempre desempregado, por conta do alcoolismo e do vício no jogo. Rose Mary, uma artista lunática de personalidade bipolar, também não durava muito nos empregos de professora, pois preferia dedicar-se a pintar quadros que nunca vendia.
Ao leitor, é bom que se advirta: a leitura de O Castelo de Vidro pode causar náuseas, indignação, revolta. Espécie de catarse da autora (escrevê-lo parece ter sido uma maneira dela se reconciliar com seu passado), as memórias de Jeanette Walls chegam a ser assombrosas. É surpreendente como essas crianças sobreviveram a tantos perigos, desconforto, insegurança e constrangimentos. O casal, que parecia não ter condições de cuidar nem de si mesmos, impingia aos filhos uma educação nada ortodoxa, baseada em conceitos que eles mesmos criaram. Jeanette cresceu sem certidão de nascimento (Rex e Rose Mary não achavam necessário registrar os filhos). Aos 3 anos, ela se queimou tentando cozinhar uma salsicha (porque os pais diziam que eles tinham que se virar sozinhos desde pequenos). Viviam mudando de cidade, sempre que os pais perdiam o emprego ou se metiam em confusão, deixando para trás quase todos os pertences.
Falando assim, parece crueldade extrema, mas o tom carinhoso e bem-humorado com que ela nos relata sua infância ímpar, nos leva a (quase) nos simpatizarmos com essa estranha família.  Episódios assustadores são tratados como "aventuras", como aquele em que o pai sai pelo deserto dirigindo quase desgovernado, fazendo com que a autora, ainda uma menina, seja lançada para fora do carro. Detalhe: ele leva algum tempo para perceber que a pequena não estava mais no veículo. Em outro momento, um marginal entra pela casa aberta à noite e tenta pôr as mãos em Jeanette, sendo perseguido pelo irmão Brian, enquanto os pais dormem pesadamente. Há ainda o trecho trágico e patético em que Rose Mary come chocolates escondida debaixo das cobertas enquanto as crianças não têm com que se alimentar.
Com tanta loucura e irresponsabilidade, os filhos tiveram que inventar meios de sobreviver, lutando contra a fome, o frio, o abandono. "Quando as outras garotas jogavam fora os sacos com os restos do almoço, eu ia catar na lata de lixo (...). Eu voltava para dentro do banheiro e dava uma conferida nas minhas descobertas deliciosas antes de comer".
Há salvação para isso? Entre traumas e dores, a autora prova que sim. De um jeito ou de outro, as crianças tornaram-se adultos bem-sucedidos (abra-se exceção para a caçula, Maureen, cuja história se entende melhor ao ler o livro). Exemplos de superação que confirmam a máxima popular de que "o que não mata, fortalece".
Mais do que sobreviver, o maior desafio de Jeanette Walls e de seus irmãos foi perdoar e amar seus pais, apesar de tudo. Chegar ao fim do livro traz  uma espécie de alívio, é um autêntico final (quase) feliz para um conto de fadas aterrador. Como história real, é comovente e exemplar. Porém, como literatura, é apenas um livro mediano.

Jeanette Walls nasceu em 1960, na cidade de Phoenix, Arizona. Formou-se pela Universidade de Columbia e foi repórter da New York Magazine, Esquire, USA Today e MSNBC.com, onde trabalha atualmente.

Livro: O Castelo de Vidro.
Autor: Jeannette Walls
Editora: Nova Fronteira
Ano: 2007
Edição: 1
Número de páginas: 368

http://pt.shvoong.com/books/biography/2030677-castelo-vidro/

quinta-feira, 24 de junho de 2010

As Paixões de Rosa.

O pintor Amedeo Modigliani viveu um romance confuso com a bela Jeanne, e quando morreu, na miséria e destroçado pela bebida, sua esposa suicidou-se no dia seguinte.
Oscar Wilde casou-se, aos 29 anos, com Constance Lloyd, disposto a “curar” sua própria homossexualidade. Pouco depois, começa a viver romances com rapazes. Apaixonado pelo lorde Alfred Douglas, um jovem “maldoso, vaidoso e frívolo”, comete o erro de processar o pai do amante por calúnia. Não apenas perde o processo, como é condenado por “conduta indecente”.

Paul Verlaine já era um poeta famoso, feio e beberrão casado com Mathilde quando conheceu Rimbaud, um rapaz belíssimo e problemático que também escrevia versos. Com ele embarca num caminho de autodestruição que envolve sexo, bebidas e brigas. Num desses episódios, atira em Rimbaud e acaba preso por dois anos. Os dois sobrevivem. A poesia de Verlaine, não.

Liz Taylor e Richard Burton levaram para vida real as cenas de amor que viviam no filme Cleópatra. O filme foi um fracasso, mas o romance deu o que falar.  Entre drogas e bebidas, casaram-se e divorciaram-se várias vezes. O último casamento dos dois acabou bem antes da morte dele em 1984. A paixão pelo jeito, ainda existia.
John Lennon e Yoko Ono conheceram-se em 1966, no auge da Beatlemania. Aos 26 anos, ele era casado e pai de Julian. Ela, uma artista excêntrica de 33 anos. Quando Lennon se divorcia para casar com Yoko, a comoção entre os fãs é geral. O casal se envolve em campanhas pela paz.  Já o casamento, não era lá tão tão pacífico. 

A paixão, com todas as suas nuances, cores e horrores está retratada nesse interessante livro da jornalista espanhola Rosa Montero. Fruto de uma série de artigos publicados no jornal El País em 1998 e 1999, é um verdadeiro tratado sobre esse sentimento que envolve, engrandece e aniquila ao mesmo tempo. A partir de uma pesquisa minuciosa e um texto muito agradável de se ler, Rosa Montero revela histórias de amores célebres, das mais variadas épocas. Desmistificando o romantismo, tenta decifrar os mistérios de um sentimento que muitos confundem com o amor. Enquanto analisa diversos romances, provoca no leitor o questionamento sobre até onde vão os limites da paixão.Segundo ela,"uma alienação na qual a pessoa amada é apenas uma desculpa que nos damos para alcançar a emoção extrema de se apaixonar".
Lendo cada uma das 18 deliciosas histórias de Rosa percebi que não existe paixão calma, sólida, construtiva, equilibrada. Entre os casais retratados, existe, quase sempre, ansiedade, deslumbramento, obsessão, violência e ciúmes. Em cada história, há o desequilíbrio de um dos lados (ou de ambos), transformando amado e amante em cúmplices, num cenário onde um é a vítima e o outro, o carrasco(com eventuais trocas de papéis). Especificamente, nos tempos antigos, o cenário da promiscuidade e da loucura é ainda maior. Tolstoi enlouqueceu (e deixou a esposa histérica). Verlain atirou em Rimbaud, cego de paixão. Modigliani bebeu até morrer e sua esposa suicidou-se em seguida, grávida do segundo filho dos dois. São pessoas assim, que parecem saídas de um livro de ficção, que são desvendadas pela escrita sincera e impactante de Rosa. De tudo isso, ficam as histórias saborosas e muitas vezes aterradoras, de relacionamentos onde a paixão é tão forte, tão intensa, que não sobra espaço para o verdadeiro amor.

Rosa Montero nasceu em Madrid em 1951, estudou Jornalismo e Psicologia. Colabora com o jornal El País desde 1976.  Prêmio Nacional de Jornalismo (1980) e Prêmio Rodríguez Santamaria de Jornalismo (2005). Entre seus livros estão Histórias de Mulheres, O Coração do Tártaro, A Filha do Canibal e A Louca da Casa.
Paixões: Amores e Desamores que Mudaram a História. Rosa Montero. Editora: Ediouro, 189 páginas.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago, capítulo final.

Morreu hoje, em Lanzarote, Espanha, aos 87 anos, um ser humano raro e um escritor extraordinário: José Saramago. Entre os meus livros preferidos, dois são de sua autoria - Ensaio sobre a Cegueira e Todos os Nomes. Tinha um jeito peculiar de escrever e contar histórias, que o tornou singular. Possuía uma temática engenhosa e inesgotável. Escrevia de um só fôlego, omitia parágrafos, pontuação, redigia romances inteiros sem colocar um nome sequer num personagem. Desafiava o catolicismo, com jeito maroto, mas não, no meu entender, desrespeitoso. Foi o único escritor em língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, com o livro Memorial do Convento, o que para nós, brasileiros, também é motivo de orgulho. Gostaria que Saramago vivesse mais 100 anos para poder continuar nos brindando com sua escrita genial. Porém, a herança que deixou, com sua profícua obra, já é um grande presente. A melhor homenagem que podemos lhe prestar é ler (e reler) seus grandes livros.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Pablo, Vinícius, Fernando



Um pouco de romantismo não faz mal a ninguem. Em homenagem ao Dia dos Namorados que está chegando, três mestres no assunto. Poemas que são eternos como um grande amor.

Antes de Amar-te (Pablo Neruda)

Antes de amar-te, amor, nada era meu
Vacilei pelas ruas e as coisas:
Nada contava nem tinha nome:
O mundo era do ar que esperava.
E conheci salões cinzentos,
Túneis habitados pela lua,
Hangares cruéis que se despediam,
Perguntas que insistiam na areia.
Tudo estava vazio, morto e mudo,
Caído, abandonado e decaído,
Tudo era inalienavelmente alheio,
Tudo era dos outros e de ninguém,
Até que tua beleza e tua pobreza
De dádivas encheram o outono.

Soneto da Fidelidade (Vinícius de Morais)

De tudo, meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor ( que tive ) :
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Todas as cartas de amor são ridículas
(Fernando Pessoa/Álvaro de Campos)

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

domingo, 30 de maio de 2010

Tempos muito estranhos.

Quando a Alemanha de Hitler já tinha invadido diversos países e a Inglaterra lutava desesperadamente para manter-se estável, os japoneses atacaram Pearl Harbour - e os EUA foram forçados a entrar no conflito. Esse livro conta os bastidores dessa história na casa mais famosa dos EUA: a Casa Branca.
Tempos muito estranhos, de Doris Kearns Godwin, é um relato dos anos de Franklin Delano Roosevelt no posto de homem mais importante dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Confesso que  que antes de lê-lo, pouco sabia sobre Franklin Delano Roosevelt. Sabia de sua relevância no new deal, a aliança com o poderoso Churchill durante a Segunda Guerra, mas não conhecia muito de sua personalidade. E o livro acabou sendo uma lição que nunca aprendi na escola. Ele revela o cotidiano do casal Franklin - Eleanor Roosevelt, seus amigos, companheiros (e amantes) durante o maior conflito mundial, ao mesmo tempo em que esboça os acontecimentos mais
 marcantes da época. Ao longo dos capítulos, desvenda a personalidade carismática de Roosevelt; a paralisia após a pólio, que não o impediu de ter uma vida pública intensa; seu otimismo e autoconfiança, sua habilidade em cativar pessoas dos mais diferentes tipos, seu casamento e parceria com Eleanor Roosevelt, que teve uma ascensão gradativa, de simples esposa do presidente a uma das mulheres mais influentes do país – quase ofuscando o brilho do marido.
O livro é enriquecido pela descrição de personagens fascinantes que, mais do que participar da vida do casal, compartilhavam de sua intimidade, morando em aposentos da Casa Branca; alguns, durante anos. Entre eles, Missy LeHand, secretária partícular e amiga do presidente, que a ele devotava verdadeira adoração. Segundo alguns, Missy se comportava como a real esposa de Franklin, que tinha por ela a mesma afeição; Harry Hopkins, que a autora chama de alter-ego de Roosevelt, seu assessor no período mais conturbado de seu mandato. De aspecto frágil e esquelético, Hopkins era, porém, muito contundente em suas ações e fiel ao extremo. Era ele quem viajava para a Inglaterra para encontros estratégicos com Churchill, antes mesmo do primeiro contato entre os dois estadistas.
Outra figura peculiar era Lorena Hickock, chamada de Hick, jornalista e grande amiga de Eleanor, com quem, especula-se, ela teve uma ligação amorosa. E o próprio Churchill, que esteve hospedado algumas vezes na Casa Branca, com seus hábitos pitorescos de só dormir de camisolão e pedir ao mordormo “uma dose de Cherez pela manhã, duas de uísque com soda no almoço e um champanhe 90 anos à noite”, além da escapulida diária para a sesta vespertina.
Em um dos trechos mais engraçados do livro, o primeiro ministro inglês aparece de camisolão, traseiro à mostra, engatinhando no compartimento de bombas do avião que o transportava para um encontro em Casablanca com o presidente americano.
O livro reúne, ainda, momentos contundentes, como quando a população americana é conclamada a participar, doando potes e panelas de alumínio para serem derretidos e reutilizados na fabricação de aviões. Meias de seda das senhoras deveriam ser doadas para a fabricação de para-quedas, momento em que Eleanor, para dar exemplo, passa a usar meias pretas de algodão.
Em Tempos muito estranhos, a primeira dama ocupa espaço tão relevante quanto o do presidente. Sempre fiel à causa social e impelida a participar  efetivamente dos acontecimentos em seu país, foi a primeira esposa de presidente a ter um emprego no governo, a comparecer diante de um congresso, a dar coletivas à imprensa e manter uma coluna nos jornais. É marcante no livro sua decisão de viajar para a Inglaterra para visitar as tropas americanas ali posicionadas. Nos EUA, quando a mão-de-obra torna-se escassa, ela incentiva as norte-americanas a entrarem para o mercado de trabalho, já que os homens, seus pais, maridos e irmãos estavam no front de guerra – e o país não podia parar. Com isso, as mulheres tomaram gosto, assumiram tarefas tidas como masculinas em fábricas e indústrias e nunca mais foram as mesmas. Porém, o fato de Eleanor aparecer com tanta intensidade no livro, não significa que Roosevelt não se destaca. Ao contrário: carismático e confiante, ele justifica a imagem de um dos homens mais importantes de sua época e as passagens de seus diálogos com Churchill são inesquecíveis. Em determinado ponto, registra-se uma frase de Roosevelt para o amigo britânico: “É muito divertido estar na mesma década que você". Em outro trecho, quando alguém pergunta à Primeira Dama como pensa o Presidente, esta responde: "Meu caro, o Presidente não pensa, ele decide".
É interessante como esse homem, que se locomovia por cadeira de rodas, quase nunca demonstrava fraqueza. Caminhava apoiando-se e discursava de pé, daí o fato de sua deficiência ser esquecida. A imprensa era tão solidária a ele que não o fotografava em cadeira de rodas.
Eu levaria muitas páginas para discorrer sobre por que o livro Tempos Muito Estranhos é uma grande obra. Mas prefiro recomendar a leitura. Será muito mais prazeroso.

Livro - Tempos Muito Estranhos
Autor: Doris Kearns Godwin
Editora: Nova Fronteira

quinta-feira, 20 de maio de 2010

O Outro - Bernhard Schlink



Li esse livro esperando o meu vôo no aeroporto. Tão curtinho, 96 páginas, deu até pena de acabar logo. O autor, Bernhard Schlink é o mesmo de O Leitor, que ganhou uma versão cinematográfica e deu um Oscar para Kate Winslet. Diga-se de passagem, o filme é muito bom.
O Outro segue a mesma linha e estilo de O Leitor. É um livro que nos prende até o fim. O texto de Schlink é sucinto, objetivo, mas a história, sim é engenhosa. Após a morte repentina de sua esposa (Lisa), um homem (Bengt) recebe uma carta de alguém que não sabe que ela morreu. A grande curiosidade ou comiseração o leva a abrir e ler a mensagem, momento em que começa a descobrir um outro lado de sua esposa que ele não conhecia. Ela tinha com o autor da carta uma ligação amorosa.
Obcecado por entender que ligação é essa e como ela se deu sem que ele percebesse, o homem decide responder a essa carta, como se fosse Lisa. Ao mesmo tempo que mantém viva a memória da esposa, a cada nova carta, ele a redescobre. O que se lê nas entrelinhas é a angústia do homem ao perceber que sua esposa não era sua, não era quem ele julgava ser. Ela, sim, era outra.
Nas páginas seguintes, sente-se que o próprio marido está se deixando seduzir pela figura do amante (não no sentido sexual, mas mental). Afinal, quem será esse homem extraordinário que mereceu o amor de sua esposa? Inevitavelmente chegará a hora de ele ir ao encontro do Outro.
A mensagem do livro é muito clara. Ninguém rouba ninguém de você. Você é quem deixa o seu amor partir. Por comodismo, por excesso de confiança, por amar de menos – ou demais.
Não é o amante quem seduz: é o outro, que se deixa levar - ou amar - por curiosidade, cansaço, tédio, desespero. É a vontade de amar e de ser amado - ou conquistado - que faz alguém se entregar.
Ou, melhor dizendo, o que nós amamos não é a pessoa: é quem nos tornamos por causa dela. Deu pra entender?

Bernhard Schlink nasceu em 1944, em Bielefeld, e é jurista de formação. Autor, entre outros, de O leitor, A volta para casa e A menina com a lagartixa. O Outro também ganhou versão cinematográfica, com Liam Nesson, Antonio Banderas e Laura Linney.

Editora: Record
Autor: BERNHARD SCHLINK
ISBN: 9788501085436
Ano: 2009
Edição: 1
Número de páginas: 96

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Mária digam por favor.

A vida inteira eu tive que corrigir quando pessoas falavam meu nome pela primeira vez:
- Maira? Mara? Mariá?
- Não... É Mária mesmo, feminino de Mário.
Invariavelmente a pessoa fazia uma expressão de surpresa:
- Ah, que diferente!
Em documentos variados, sempre vem a tal Maria me atormentar. No telemarketing então, é inevitável:
- Queria falar com a Senhora Marííía Lacerrrrda?
Mas houve um momento em que fiquei muito, muito orgulhosa do meu nome. Tinha eu meus 11, 12 anos de idade, quando descobri o poema Canção de Muitas Marias, do nosso maravilhoso poeta modernista Manuel Bandeira.Como se não bastasse a infinidade de belos poemas com que Bandeira nos brindou, a mim, sem querer, ele me deu esse presente, falando o que eu gostaria de dizer a alguns incautos personagens: "Mária digam por favor".

Canção de muitas marias
Manuel Bandeira (Lira dos Cinqüenta anos)

Uma, duas, três Marias,
Tira o pé da noite escura.
Se uma Maria é demais,
Duas, três, que não seria?

Uma é Maria da Graça,
Outra é Maria Adelaide:
Uma tem o pai pau-d’água,
Outra tem o pai alcaide.

A terceira é tão distante,
Que só vendo por binóculo.
Essa é Maria das Neves,
Que chora e sofre do fígado!

Há mais Marias na terra.
Tantas que é um não acabar,
- Mais que as estrelas no céu,
Mais que as folhas na floresta,
Mais que as areias no mar!

Por uma saltei de vara.
Por outra estudei tupi.
Mas a melhor das Marias
Foi aquela que eu perdi.

Essa foi a Mária Cândida
(Mária digam por favor),
Minha Maria enfermeira,
Tão forte e morreu de gripe,
Tão pura e não teve sorte,
Maria do meu amor.

E depois dessa Maria,
Que foi cândida no nome,
Cândida no coração;
Que em vida foi a das Dores.
E hoje é Maria do Céu:
Não cantarei mais nenhuma,
Que a minha lira estalou,
Que a minha lira morreu!

Poeta do modernismo brasileiro nasceu em Recife, Pernambuco, em 1886. Publicou seu primeiro livro de versos, Cinza das Horas, no ano de 1917. Participou da Semana de Arte Moderna de 1922 declarando estar "farto do lirismo comedido".
Um dos nomes mais importantes do modernismo no Brasil, faleceu no ano 1968.
(Fotografia extraída do site http://recantodasletras.uol.com.br)

sábado, 1 de maio de 2010

Meu amado Drummond.

Minha lista de leitura está muito longa, pois vou parando um para começar outro. Preciso retomar a leitura de forma ordenada. Confesso que não está muito fácil, porque minha cabeça virou de repente um romance inacabado. Faltam muitas páginas, mas acho que elas se rasgaram. Para não deixar os escritos da mente se perderem, recorro mais uma vez à boa e velha poesia, minha amiga.



O FIM NO COMEÇO
A palavra cortada
na primeira sílaba
A consoante esvanecida
sem que a língua atingisse o alvéolo.
O que jamais se esqueceria
pois nem principiou a ser lembrado.
O campo - havia, havia um campo?
irremediavelmente murcho em sombra
antes de imaginar-se a figura
de um campo.

A vida não chega a ser breve.

Livro: A VIDA PASSADA A LIMPO - A FALTA QUE AMA.Carlos Drummond de Andrade. Ed. Record, 1994.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Dona Adélia


Quem melhor do que ela para falar de mulheres, de amores, de emoções femininas? Adélia é completa.

Dona doida(Adélia Prado)

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso,
com trovoada e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

Texto extraído do livro "Poesia Reunida", Editora Siciliano - 1991, São Paulo.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Ah, esse Vinícius...



O que tinha de ser

Porque foste na vida
A última esperança
Encontrar-te me fez criança
Porque já eras meu
Sem eu saber sequer
Porque és o meu homem
E eu tua mulher

Porque tu me chegaste
Sem me dizer que vinhas
E tuas mãos foram minhas com calma
Porque foste em minh'alma
Como um amanhecer
Porque foste o que tinha de ser.

Sedutor, bon vivant, romântico inveterado, conquistador incorrigível, poeta irrepreensível, amante da vida, Vinícius de Moraes, nosso grande poetinha, soube viver. E deixou como herança alguns dos mais belos poemas de amor e paixão.

(Quem souber o crédito da foto, que inclui o parceiro Toquinho, favor me dizer.)

quarta-feira, 3 de março de 2010

Mais um da Sylvia

Por que será que sou tão fascinada por essa escritora tão lúcida e louca que pediu pra sair da vida no ano em que nasci? Talvez nuncasaiba a resposta. Por hora, um poema:

Canção de Amor da Jovem Louca

Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro
Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer
(Acho que te criei no interior da minha mente)

Saem valsando as estrelas, vermelhas e azuis,
Entra a galope a arbitrária escuridão:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Enfeitiçaste-me, em sonhos, para a cama,
Cantaste-me para a loucura; beijaste-me para a insanidade.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Tomba Deus das alturas; abranda-se o fogo do inferno:
Retiram-se os serafins e os homens de Satã:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Imaginei que voltarias como prometeste
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão
Pelo menos, com a primavera, retornam com estrondo
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro:
(Acho que te criei no interior de minha mente.)

Sylvia Plath

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O Caçador de Pipas


Romances sobre culturas diferentes como o Afeganistão têm sido uma febre nos últimos anos. Olho-as com um pouco de reserva. As pessoas tendem a olhar o "diferente" com encantamento, porém é um encantamento meio falso. Dura o tempo de ser uma válvula de escape. Como se dissessem: - Ainda bem que eu não vivo nesse lugar ou nessa cultura. Não chega a ser um interesse real. Histórias contadas em forma de narrativa sempre deixam um fio de incerteza: -Será que isso realmente aconteceu? - o que prende ainda mais o leitor. É o caso de O Caçador de Pipas, de Khaled Hosseini.

O livro conta a história de um afegão há muito tempo emigrado nos Estados Unidos, que se vê obrigado a acertar as contas com o passado numa viagem de retorno a seu país de origem. O que ele teria deixado para trás?
Ao longo da história, lê-se nas entrelinhas o tempo todo, um sentimento de culpa e remorso. Na primeira parte do livro, sente-se exatamente como se sentia o menino Amir, gostando e, ao mesmo tempo, repudiando seu amigo. O amor e a vergonha que sentia por Hassan, dócil, solícito e afetuoso. Uma bondade que chega a nos enervar, visto que sentimos que não é totalmente correspondida. Apesar de não poder estudar, Hassan acordava todas as manhãs e preparava o desjejum de seu amigo. Amir compensava lendo para Hassan as histórias que ele jamais poderia decifrar.
Tendo ido morar nos EUA deixando para trás Hassan e o caos do país, Amir volta, já adulto, para tentar se redimir de eventos do passado. É quando a história assume tom rocambolesco e quase inverossímil. Por muitos momentos, senti-me como se o autor quisesse arrancar lágrimas do leitor pura e simplesmente. Certas partes são extremamente dolorosas. Porém, outras, muito rasas, muito cruas, sem estilo. A cultura de castas no Afeganistão era e é injusta. Forma pessoas que, mesmo que não concordem com ela, nada fazem para mudá-la. Dizem que O Caçador de Pipas é uma história de amizade entre os dois meninos, Amir e Hassan. No meu entender, é a história da amizade de Hassan por Amir, seu desvelo e cuidado, e de como ela ficou marcada na vida do amigo. Não me dei ao trabalho de assistir ao filme. Para mim, seria mais um caça-níquel.