quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Mensagem de uma mãe chinesa desconhecida.

Imagine-se fazendo uma visita a uma família pobre na região montanhosa da China, no momento em que uma mulher está em trabalho de parto. Pouco depois do choro da criança, você ouve vozes abafadas de adultos desapontados. E logo mais, vislumbra um bebezinho agonizando numa bacia de água suja, abandonado pela parteira. Essa é uma das dramáticas experiências descritas pela jornalista e escritora chinesa Xinram no comovente livro “Mensagem de uma Mãe Chinesa Desconhecida”, publicado pela Companhia das Letras. Trata-se de um apanhado de histórias verídicas recolhidas pela autora, conhecida por obras que revelam ao mundo peculiaridades da cultura de seu país.
Ela começou a coletar esses relatos em 1989, quando apresentava o programa de rádio “Palavras na brisa noturna” e uma ouvinte, que se autointitulava “Waiter, uma mãe em agonia”, escreveu contando sua história. Anos depois, já radicada em Londres, decidiu reunir em um livro testemunhos semelhantes, de mães que tiveram que abrir mão de suas menininhas. Juntamente com o depoimento de duas oficiais de adoção - Mary Verde e Mary Vermelha -, e uma velha parteira, as histórias traçam um retrato brutal da política do filho único na China.
Ao leitor, é bom que se alerte – são histórias impressionantes e assustadoras. Impossível lê-las,sem um sentimento de angústia e indignação por tantas vidas desperdiçadas.
Necessidade premente nos anos 80, para conter o aumento populacional, a política do filho único gerou resultados catastróficos. Numa cultura que acredita ser “dever sagrado” da mulher produzir um herdeiro homem, a imposição acabou abrindo uma ferida incapaz de ser fechada. Crianças abandonadas por seus pais em estações de metrôs e orfanatos, entregues à própria sorte. Ou ainda, sufocadas ao nascer, pelo simples fato de serem meninas.
“As mulheres chinesas, desde o inicio dos tempos jamais tiveram direito a suas próprias historias. Elas viviam na camada inferior da sociedade. Esperava-se delas obediência inconteste e elas não tinham meios de construir a própria vida. Isso se tornara tão natural que a maior parte das mulheres só desejava duas coisas: não dar a luz filhas mulheres nesta vida e não renascer como mulher na próxima.”
Sendo ela mesma uma órfã de pais vivos, pois cresceu em internatos e não se lembra de ter comemorado sequer um aniversário com eles, ocupados demais em servir a Revolução Cultural, a impressão que se tem é que esse livro serve também para a autora acalentar o próprio coração.
Em meio a casos que beiram a tragédia, perguntas sem resposta e feridas que não cicatrizam, talvez não importe tanto se essas mensagens alcançarão a menina certa ou se conseguirão aplacar a dor eterna dessas mães.
O importante mesmo é que a historia delas foi escrita.

Mensagem de uma mãe chinesa desconhecida.
Autora: Xinram
Tradutora: Caroline Chang
Editora: Companhia das Letras
Publicação: 2011
Páginas: 272



sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Um livro por dia - Jeremy Mercer.

Quem de nós, aficionados por livros, nunca se imaginou, ainda que de forma utópica, morando em uma livraria, repousando em meio a diálogos imaginários com Machados, Saramagos e Tolstois?
Fantasias à parte, foi exatamente o que o jornalista canadense Jeremy Mercer fez quando, após uma insólita perseguição em seu país, acabou indo parar, de mala e cuia e quase sem dinheiro nas portas da livraria Shakespeare and Company, em Paris. A aventura é relatada em “Um livro por dia – Minha temporada parisiense na Shakespeare and Company”, publicado pela editora Casa da Palavra.

Lema da livraria inscrito num dos cômodos.

Era janeiro de 2000, na virada do segundo milênio quando o acaso colocou Mercer frente a frente com o excêntrico George Whitman, na época quase octogenário, proprietário daquela que este mesmo definia como “uma utopia socialista em forma de livraria”.
Vale esclarecer que a Shakespeare and Company de George teve sua origem inspirada na livraria homônima fundada por Sylvia Beach, famosa na primeira metade do século XX por ser um ponto de encontro dos jovens escritores da “geração perdida”. Sylvia fechou as portas em 1941, sob pressão do nazismo e uma década depois, num prédio do século XVIII, George inaugurou sua loja.
Ainda hoje a pitoresca livraria tem por tradição acolher “almas perdidas e escritores necessitados”, segundo a filosofia de seu fundador. Em troca de um lugar para dormir, os hóspedes só precisam ajudar nas tarefas diárias e cumprir uma inusitada missão: escrever ali uma obra e - sabe-se lá como – ler um livro por dia.

Com habilidade jornalística, Mercer descreve os quatro meses em que viveu entre os milhares de volumes da livraria, que recebe turistas do mundo inteiro, a maioria atraída por lendas como a de que George seria filho do poeta Walt Whitman e de que Shakespeare em pessoa teria morado ali.

Não é lenda, porém, o fato de que pelo local já passaram dezenas de milhares de escritores e artistas, incluindo nomes famosos como Henry Miller, Anaïs Nin, Jack Kerouac e Allen Ginsberg.
Em sua temporada na Shakespeare and Company, Mercer torna-se amigo de Kurt, um jovem norte-americano que tenta transformar em romance o roteiro de seu primeiro filme; vive momentos impagáveis com o enigmático poeta inglês Simon, ex- alcoólatra e usuário de haxixe; e acaba se apaixonando por Elina, uma linda artista plástica romena nada convencional. Mas a figura mais intrigante é o próprio George, um sonhador com ideias comunistas e um estilo de vida muito peculiar.

George Whitman em frente a sua loja.
Comandando de forma caótica a contabilidade da livraria, guardava dinheiro nas estantes e até mesmo embaixo dos colchões. Não por acaso, o local era alvo de ladrões que surrupiavam os livros à menor distração do proprietário, que apenas se queixava de que “eles nem ao menos vão lê-los”.
Sobrevivendo às excentricidades de George e seus hóspedes, a estadia na livraria torna-se para Mercer uma experiência altamente enriquecedora. Ao fim de alguns meses, tendo alugado seu próprio apartamento, ele encontra um jeito de retribuir a hospitalidade do amigo usando para isso seu talento no jornalismo investigativo.
“Um livro por dia” sugere ser, à primeira vista, uma obra sobre o amor aos livros. Também pode parecer – e é – a história da Shakespeare and Company e de seu fundador, o inquieto George Whitman.
Mas no fim, acaba se revelando um livro sobre encontros e o que eles podem provocar na vida de uma pessoa.


PS: A Shakespeare and Company mantém-se ainda hoje, firme e forte, num charmoso quarteirão da Rive Gauche, às margens do Rio Sena, agora sob o comando da filha de George que, não por acaso, se chama Sylvia Beach Whitman. Com sorte, é possível flagrá-lo, quase centenário, descendo ao primeiro andar para buscar o jornal do dia.

Um livro por dia
Jeremy Mercer
Casa da Palavra
(Resenha publicada dia 27/08/2011 no Caderno Pensar, Jornal A Gazeta - Vitória - ES) 

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Eterno.

Conheci Carlos Drummond de Andrade aos 12, 13 anos. Talvez até muito cedo, para ter a real noção da grandeza daquele que, na época, já era um senhor, taciturno, tímido e genial.

Em pouco tempo, ele se tornou inspiração em minhas tentativa de poemas, assim como o foram Bandeira, Quintana e Vinícius. (Esses homenzinhos maravilhosos são fonte de inspiração para qualquer pessoa que ame as letras.)
E o querido Drummond cresceu diante de meus olhos adolescentes, me acompanhando até os dias atuais.
Falar do nosso poeta maior é tarefa que dá frio na barriga. Difícil pensar em poesia, sem lembrar do gauche Carlos. Inexato defini-lo em poucas palavras, ele que tão bem se definiu em versos.
Impossível se aprofundar em sua obra e sair incólume.
De uma “pedra no meio do caminho” a um certo “João que amava Teresa que amava Raimundo.”
E, por falar em Raimundo, “mundo, mundo, vasto mundo”!
Adiante, ele “perde o bonde e a esperança e volta pálido para casa”.
Fala de "um tempo em que não adianta morrer.
Um tempo em que a vida é uma ordem”.
E lamenta por ter "apenas duas mãos e o sentimento do mundo".
Cita sua Itabira natal, “apenas uma fotografia na parede (e como dói)”.
Mais à frente, compõe os mais belos poemas de amor, inclusive eróticos.
Lembra que "o amor foge a dicionários e a regulamentos vários".
E proclama: “Já sei a eternidade: é puro orgasmo”.

Há 24 anos Carlos Drummond de Andrade partiu para fazer poemas no céu.
E a nós, órfãos de seus versos, só resta agradecer por esse brasileiro - tão mineiro - ter se tornado tão humanamente universal.
Diria ele: "E como ficou chato ser moderno, agora serei eterno."
Assim seja, Carlos.




Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 31 de outubro de 1902 e morreu na cidade do Rio de Janeiro, RJ, em 17 de agosto de 1987. É considerado um dos maiores poetas do modernismo brasileiro.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Um poeta, várias pessoas.



Ele era solitário por natureza, tímido e reservado. Pouco saiu de sua terra natal, Lisboa, mas sua obra ganhou o mundo, principalmente após sua morte. Profícuo e brilhante, Fernando Pessoa (1888-1935) é considerado o maior poeta português depois de Camões. Publicou seu primeiro texto em prosa criativa, em 1913, e até sua morte, não deixou de produzir, tendo deixado poemas inéditos. Respeitado em Lisboa como intelectual e poeta, publicou seu trabalho em revistas, muitas das quais ele mesmo ajudou a fundar e dirigir, mas sua genialidade só foi compreendida e plenamente reconhecida após sua morte. Ninguém fazia ideia da qualidade da obra existente no grande baú onde ele guardava tudo o que escrevia.

Com uma sensibilidade que não cabia dentro de si, Fernando Pessoa desmembrava-se em muitos. Eram os chamados heterônimos. Diferente dos pseudônimos, que são nomes diferentes para um autor, os heterônimos constituíam-se em várias pessoas em um único poeta. Cada um deles, com sua própria biografia, temática poética e estilo. Segundo ele, “por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e idéias, os escreveria”.

Os principais heterônimos de Fernando Pessoa são:

- Alberto Caeiro - o mais objetivo. Busca "as sensações das coisas tais como são". É o antípoda de Fernando Pessoa, a negação do mistério, do oculto. Usa linguagem simples, direta e com a naturalidade do discurso oral.
- Ricardo Reis - representa a vertente clássica ou neoclássica da criação de Fernando Pessoa. Linguagem contida e disciplinada, versos curtos, tendendo ao formalismo.
- Álvaro de Campos -o lado "moderno" do poeta, caracterizado por uma vontade de conquista, um amor à civilização e ao progresso e com linguagem de tom irreverente.
Sejam quantas pessoas existam dentro de Pessoa, o importante é sorver com vagareza seus tão intensos poemas, que traduzem o que todo ser humano poderá sentir, seja num único momento ou em toda uma vida.
Em um dos mais famosos, que não por acaso se intitula Autopsicografia, ele afirma:

“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente”.

Uma dor que, certamente, Fernando Pessoa carregou a vida inteira.

(123º aniversário do poeta português Fernando Pessoa)

domingo, 5 de junho de 2011

Adélia, Doida e Santa

Ler os poemas de Dona Adélia - como gosto de chamá-la - é sempre uma experência forte, qual descobrir um espelho. Mulher de verdade, sem subterfúgios, sem excessiva vaidade, sem falsos conceitos de superioridade. Que se desdobra pra agradar um homem, que acha bonito fazer bolo e guarda com carinho lembranças de família. Todas nós carregamos dentro uma mulher assim.
Adélia Prado é senhora de respeito, mineira das boas, que se parece tanto com uma tia da gente, servindo café e contando causos. E é também, e principalmente, uma das mais reconhecidas, queridas e admiradas poetas do nosso pais.
Escrevendo desde a adolescência, estudou Magistério, lecionou mais de 20 anos e só foi publicar seu primeiro livro depois dos 40 anos. Antes disso, perdeu pai e mãe, casou e teve cinco filhos. Dela falou Carlos Drummond de Andrade ao vê-la surgir no meio literário: "

"Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis".

"Adélia Prado - Poesia Reunida", publicado em 1991, pela Editora Sicliano, reúne os cinco primeiros livros da autora ("Bagagem", "O coração disparado", "Terra de Santa Cruz", "O pelicano" e "A faca no peito) em 405 paginas de emoção, singeleza e arrepio.
Com um estilo muito peculiar, sem qualquer cacoete de intelectualidade ou sofisticação, Adélia escreve como fala e despeja sobre nossa cabeças, versos como:
 "Quero estar cheia de dor, mas não quero a tristeza. Por algum motivo fui parida incólume, entre escorpiões e chuva" (Códigos) ou:

 "Porque tudo que invento já foi dito nos dois livros que li: as escrituras de Deus, as escrituras de João. Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão" (A invenção de um modo).

Seus versos retratam, com singeleza e lirismo, o dia a dia comum de pessoas comuns, lembranças de sua Divinópolis natal. Uma poesia cotidiana que frita ovo, que chora, que sente solidão. Que se apaixona, sofre, cata feijão. Que se entrega ao amado sem medo e sem recato. Que enxerga beleza na simplicidade, num inseto, num guarda-chuva, num vestido esquecido no armário.

" Seria tão bom,como já foi,
as comadres se visitarem nos domingos.
Os compadres fiquem na sala cordiosos,
pitando e rapando a goela.
Os meninos farejando e mijando com os cachorros.
Houve esta vida ou inventei?"
(Clareira)

"Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo.
Não é. A coisa mais linda do mundo é sentimento.
Aquele dia de noite , o pai fazendo serão, ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor, essa palavra de luxo".
(Ensinamento)

Há nos poemas de Adélia um constante diálogo com Deus, herança da criação católica. Um Deus que aparece, ora bondoso, ora aterrorizante.

"Estou com saudade de Deus,
uma saudade tão funda que me seca."
(Orfã na janela)

"Preciso me confessar ao homem de Deus:
cometi gula, ansiei pelo detalhe das fraquezas alheias
e mesmo tendo marido, explorei meu corpo"
(Nem um verso em dezembro)


Não se engane, porém, quem pensa que Dona Adélia é só tia boa que reza. Seus poemas rescendem a mulher ardente e consciente de sua feminilidade:

"Meu amor é assim, sem nenhum pudor.
Quando aperta, eu grito da janela
- ouve quem estiver passando -
ô fulano, vem depressa."
(Um jeito)

"Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim,ora não, creio em parto sem dor"
(Com licença poética).

"Quando eu sei que ele vem,
eu fecho a porta para a grata surpresa.
Vou abri-la como fazem as noivas
e as amantes. Seu nome é:
Salvador do meu corpo."
(Os lugares comuns)

"Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
Quero a fome."
(Tempo)

Feminina até a raiz do cabelo, a poesia de Adélia Prado é frágil e forte, fervorosa e sensual, meio santa meio louca e traduz como ninguém as sutilezas e doidices de todas as mulheres do mundo. Como ela mesm anuncia, no poema Com licença poética, "Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher e desdobrável. Eu sou". Somos todas, Adélia. Somos todas.



Adélia Prado, 1991.
Poesia Reunida
Editora Siciliano

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Luta armada, pátria amada. Dossiê Gabeira: o filme que nunca foi feito.

Antes mesmo de chegarmos à primeira página do livro já somos alertados: "Dossiê Gabeira: o filme que nunca foi feito traz revelações surpreendentes sobre uma das mais fascinantes, controvertidas e incomuns trajetórias do cenário político brasileiro". Nele, Fernando Gabeira, ex-guerrilheiro, jornalista, escritor e deputado federal conta, entre outras coisas, sua participação num dos episódios mais dramáticos da política brasileira: o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. No livro, resultado de seis horas de entrevistas num hotel de Ipanema, fatos que passaram quatro décadas em segredo vem à tona, sob o arguto e competente olhar do jornalista e escritor Geneton de Moraes Neto.
Contado em forma de roteiro cinematográfico, o livro não apenas desvenda os bastidores do seqüestro que resultou na liberação de dezenas de presos políticos, entre os quais, Luís Travassos, Vladimir Palmeira e José Dirceu, mas também recorda os tempos de clandestinidade, a prisão e os anos de exílio terminados num dia de sol, em Ipanema,com a famosa foto de Gabeira com uma sunga de tricô em 1979.
Sincero, honesto, contundente, o relato de Fernando Gabeira, no mínimo, faz pensar. Símbolo da militância no combate à ditadura, autor do livro "O que é isso, companheiro?" que se tornou  “bíblia” de uma geração, um dos líderes do partido Verde e defensor de causas polêmicas como a descriminalização da maconha, recentemente encantou o Brasil quando, dedo em riste, passou um carão no Presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, dizendo que "Vossa Excelência é uma vergonha para o país".
O prefácio de Ignácio de Loyola Brandão sentencia: “Dossiê Gabeira deve figurar nas faculdades de jornalismo na cátedra de como entrevistar.”
Jornalista experiente, Geneton de Moraes, consegue tirar de Gabeira revelações surpreendentes, como por exemplo, a participação do ator Carlos Vereza, simpatizante da esquerda, no disfarce dos integrantes do grupo. Gabeira teve seus cabelos tingidos pelo ator. “Ele sabia quem eu era; só não sabia de minha ligação com a ação.”
Em outro episodio relatado no livro, é perseguido e alvejado nas costas por policiais que descobrem seu paradeiro. "Tinha certeza de que ia morrer." Levado para o Hospital das Clínicas, antes de desmaiar, responde, firme, ao questionamento do médico: - Ocupação? Guerrilheiro.
Transferido para a sede da Operação Bandeirantes, é interrogado (e torturado). Na época o delegado do DOPS era Romeu Tuma. Anos mais tarde, colegas no Congresso, nunca tocaram no assunto. “Nunca mencionei a ele o fato de ter passado por ele naquelas circunstâncias. Nunca. Todos passaram. Lula passou."
Outro fato curioso foram as tentativas frustradas do Senador Antonio Carlos Magalhães para conseguir-lhe um visto de entrada nos Estados Unidos. "Fiquei bastante comovido pois Fernando Henrique Cardoso não faria algo assim. Lula não faria. Nenhum faria”. Quatro décadas depois do seqüestro, Fernando Gabeira ainda não pode pôr os pés em território americano.
Perguntado sobre como vê,  hoje, o guerrilheiro de ontem, não se abstém de análises, críticas e autocríticas sobre os erros e acertos de uma geração que sonhou mudar o Brasil (e o mundo).
“A gente não tinha a grandiloqüência que o comunismo e a revolução traziam. Em termos pessoais e íntimos tínhamos dúvidas sobre aquele processo.”
“As utopias foram sanguinárias porque deram sustento e fundamento teórico para uma série de crimes”.
“Somente no exílio é que foi possível começar todo esse processo. É um processo que não resultou numa apologia do capitalismo mas sim na criação de um espaço crítico que busca a melhoria da sociedade, sem necessariamente se integrar à visão marxista."
Sobre o tão comentado seqüestro, pondera: “O que tenho é uma compreensão detalhada dentro de uma perspectiva histórica sobre o que aconteceu: digo que foi um equívoco. Toda a luta armada foi um equivoco!”
“O problema de qualquer seqüestro é que você seqüestra um símbolo, você traz o símbolo para casa mas quando se estabelece o contato, o símbolo vira uma pessoa”.
A respeito do então presidente Lula, é reticente: “De vez em quando critico Lula. De vez em quando o elogio. Não tenho em relação a Lula, nenhum sentimento especial, de hostilidade nem simpatia.”
Sobre o ex-companheiro José Dirceu: “Nem menciono. Não tenho relações com ele. Hoje trabalha como empresário e consultor. É o destino de todo burocrata comunista. Transformar-se em um grande empresário”.
O antes rebelde e idealista Fernando Gabeira hoje vê com ressalvas a atuação da esquerda na defesa dos direitos humanos: "A esquerda é hábil quando se trata de um desrespeito cometido por um país capitalista, mas quando se trata de um desrespeito em um país socialista, o silêncio baixa.”
Questionado sobre o que diria a um jovem de vinte e poucos anos que quisesse se engajar politicamente, é cuidadoso: “Desconfio de todo velho que diz alguma coisa para um jovem de 20 anos. Há coisas que não adianta dizer: cada um deve vivê-las por si próprio.” Fernando Gabeira é um exemplo disso.

Dossiê Gabeira – o filme que nunca foi feito.
Geneton Moraes Neto, 126 pp., Editora Globo, São Paulo, 2009.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

O paulista e o potiguar. A correspondência entre Mario de Andrade e Câmara Cascudo.

De um lado um paulista, um dos ícones do Modernismo, o criador de Macunaíma. Do outro, um potiguar atarracado, um dos maiores folcloristas do Brasil. Entre os dois, 20 anos de correspondência intensa e fiel. O resultado é este delicioso livro publicado pela editora Global.
Em “Câmara Cascudo e Mário de Andrade: Cartas, 1924-1944" (Global, 2010), obra organizada pelo professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Marcos Antonio de Moraes a correspondência entre o "Cascudinho" e o "compadre Mario de Andrade" tem um destinatário muito especial : o leitor.
Ao longo de 384 páginas enriquecidas por fotos testemunhamos o nascimento de uma amizade, a partir de uma carta de Mario de Andrade comentando um artigo publicado por Cascudo. E acompanhamos o fortalecimento dos laços, na troca de elogios, gentilezas, favores e, por vezes, puxões de orelha. A fina ironia e a afetividade de Mario, o lado boêmio e bonachão de Cascudo. A crítica honesta sobre a obra do outro, sempre no intuito de valorizá-la. O respeito pela brasilidade, presente nos escritos de ambos. Tudo isso, tendo como pano de fundo acontecimentos culturais e políticos no Brasil da época.
Enquanto Mario escreve: “Luís, eu sou tão feliz! Puxa! Que camaradão tão amigo mesmo de verdade eu arranjei dentro de você”, Cascudo retribui com “Grande abraço, meu amigo, grande abraço. E se V. estiver com a cara limpa um beijo também.”
Em dezembro de 1928, Mario realiza uma viagem etnográfica ao nordeste. Queria conhecer de perto a cultura da região. Em Natal, hospeda-se na casa de Cascudo.  Sente-se tão bem recebido que adota a família do amigo e passa a chamar a mãe deste de “minha mãe daí.” Ao que Cascudo retribui com a mesma atenção: “Toda noite temos um minuto para falar no Mario. Com uma saudade tipo graúdo, seu mano.” Quando nasce Fernando Luís, o primogênito de Cascudo, este é prometido ao amigo como afilhado. Logo passam a se tratar como compadres e as cartas vindas de Natal agora trazem notícias e fotos do menino.
Há singeleza e poesia nas cartas de Cascudo: “Mamãe, papai, Dália, cães e papagaios, livros, jardim, bolo de macaxeira, ares e sombras, bois e nuvens, todos , a uma , perguntam quando é que V. volta a esta casa, a esse quartinho , a sombra destas árvores que são suas?” Não menos doce será a resposta do mano Mario ao compadre: “Uma hospedagem se paga, mas não se paga o sorriso com que sua mãe me olhava, as conversas de seu pai, e todo o resto que foi essa casa pra mim”.
Em dado momento, em 1928, Mario escreve: “Não sei se já te contei mas em dezembro estive na fazenda de um tio e escrevi um romance. Romance ou coisa que o valha, nem sei como se pode chamar aquilo. Em todo caso se chama Macunaíma.” Poucos meses depois, Cascudo responde:” Querido amigo, Em Natal não pude ler Macunaíma. Li, verdade seja, trechos às pressas. O bastante para dizer que V. pode fechar o firo brasileiro. Porque todo Brasil está ali.’
Nas últimas mensagens, já na década de 40, pouco antes do paulista falecer, Cascudo comenta com o “Mario velho” que “não somos padre e sacristão para viver rosnando “amém” quando o outro diz qualquer coisa”. E emenda: “Gostou da Antologia do folclore brasileiro? Fiz o mínimo de “efeito” pessoal . Poucas notas. Apenas para tentar o interesse coletivo”.  Responde Mario ao Cascudete: “Puxa, que livro enorme, quase seiscentas páginas. Mas que trabalhão útil você fez.”
Poder presenciar os bastidores do nascimento de uma obra como Macunaíma, de Mario de Andrade, ou do Dicionário Brasileiro de Folclore, de Câmara Cascudo. Saber direto da fonte as impressões sobre a Semana de Arte Moderna por parte de um de seus maiores ícones, ou acompanhar a produção de um dos mais completos estudiosos de folclore que o Brasil já teve. Tudo isso já valeria a leitura. A obra, no entanto, traz muito mais. É só abrir ao acaso, que lá estarão o compadre Mario e o Cascudinho a nos brindar com tiradas inesquecíveis, doces, irônicas, entusiasmadas ou melancólicas. Parafraseando Câmara Cascudo, “o Brasil está ali”.

(Andrade e Cascudo em Natal - Foto retirada do site Overmundo)











Câmara Cascudo e Mário de Andrade: Cartas, 1924-1944, organizado por Marcos Antonio de Moraes (Global).

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Um menino chamado Lobato.

Desde a publicação do primeiro livro, Urupês, em 1909, Monteiro Lobato fez parte da vida de várias gerações de brasileiros, que cresceram lendo suas histórias, especialmente as aventuras da impagável turma do Sítio do Pica-pau Amarelo. Cada um de nós, seus leitores, temos um personagem do coração: a espevitada e encrenqueira boneca de pano Emília que engoliu uma pílula e abriu “a torneirinha de asneiras”. A boa e sensata Vovó Benta que acolhia em seu sítio os netos, o corajoso Pedrinho e Lucia, a menina do Narizinho Arrebitado, que mais tarde tornou-se simplesmente “Narizinho”. A simplória e bonachona Tia Nastácia, que cuidava de todos com esmero e que, vira e mexe, era envolvida nas trapalhadas da garotada. O sábio Visconde de Sabugosa, a espiga de milho que falava feito adulto e tinha uma inteligência enciclopédica. E o roliço Rabicó, leitão que virou Marquês, graças a uma “invencionice” da Emília.
Com as histórias do Sítio do Pica Pau Amarelo, que começaram a ser publicadas na década de 20, Lobato pretendia criar aventuras com figuras bem brasileiras, recuperando costumes da roça e lendas do folclore nacional. Nas publicações seguintes, passou a misturar lendas brasileiras com elementos da literatura universal, mitologia grega, quadrinhos e cinema.
Saindo das páginas dos livros, a turma do Sítio ganhou vida na TV em diversas ocasiões, inspirando cinco séries: duas na TV Tupi, nos anos 50 e 60; uma na TV Cultura de São Paulo, em 1964, e as duas últimas pela Rede Globo. A primeira, entre 1977 e 1986, e a segunda, de 2001 a 2007.
Incluo-me nessa lista de leitores e telespectadores do Sítio. O primeiro contato com a obra de Lobato aconteceu aos 12 anos, por intermédio de meu padrinho Wellison, que me apresentou à coleção de livros que lera em sua infância, da Editora Saraiva. Fascinada, depois de pegar alguns emprestados, passei a comprar os meus próprios exemplares numa papelaria perto de casa (edições simples que guardo até hoje). Eram os anos 70. Maravilhada com as peripécias que eu via sair da mente daquele homem menino, acabei fabricando minha própria Emília de pano, com corpo laranja e vestido de bolinha. Feia como ela só.
Já naquela época, a vida num sítio, cercada de natureza e bichos e a linguagem rebuscada de Lobato não combinavam muito com a minha infância. Que dirá a dos meus filhos, em plena era da internet? Mas a obra desse escritor tão querido ajudou a despertar em mim o prazer pela leitura. E certamente assim o foi para milhares de brasileiros.
Há pouco tempo a obra desse aclamado autor começou a ser revisada - e criticada - sendo considerada racista a forma como tia Nastácia era retratada em suas histórias, particularmente em As Caçadas de Pedrinho.
Não pretendo julgar um homem que também era fruto de sua época e muito dessa época retratou. Prefiro lembrar aquele que foi o maior escritor infantil brasileiro de todos os tempos e que tanto nos deu em alegria, imaginação e sonho. O autor que, numa época em que os livros brasileiros eram editados em Paris ou Lisboa, passou a editar no Brasil, criando inovações nos livros didáticos e infantis. Que deixou obras como Urupês, Jeca Tatu, Reinações de Narizinho, Serões da Dona Benta e A Chave do Tamanho, só para citar alguns. O homem à frente de seu tempo que entrou de cabeça na Campanha do Petróleo, defendendo a exploração da nossa riqueza somente por empresas brasileiras. O visionário que dedicou sua vida e seu trabalho à luta pela preservação dos nossos valores culturais e riquezas naturais. E que foi pioneiro na defesa de nossas florestas, de nossos índios e de nossos bichos.
Deixemos que Emília, Narizinho, Tia Nastácia, Pedrinho, Dona Benta e cada personagem presente na obra de Monteiro Lobato prestem por nós, uma homenagem a esse menino que nasceu há 129 anos. E que deu a tantos brasileiros uma maravilhosa lembrança da infância.



José Bento Monteiro Lobato, nasceu em 18 de abril de 1882, em Taubaté (SP) e faleceu em 1948.

terça-feira, 15 de março de 2011

Anton Tchékhov, o médico que escrevia.

Considerado o mais atemporal e universal autor da terra de Tchaikovsky, Anton Tchékhov inseriu seu nome entre os maiores da literatura mundial de todos os tempos. E o fez de forma desassombrada, até mesmo modesta. A julgar pelos seus textos escrever, para ele, era tão natural e necessário quanto respirar.
Filho de família pobre, começou a vida adulta como médico – por sinal, muito caridoso e solidário – e logo foi arrebatado pelo talento literário. Durante muito tempo, atendia durante o dia e escrevia à noite. Logo, estaria vivendo de literatura e, juntamente com Dostoiévski, Tolstoi e Gogol , mudou a forma de contar histórias na Rússia da época.
Com sua escrita sincera e afiada, Tchékhov passeava com naturalidade entre os contos e as peças teatrais, destacando-se nos dois gêneros. Fazendo da miséria humana seu principal tema, interpretou como ninguém os sentimentos dos menos favorecidos, descrevendo situações familiares a qualquer pessoa. Seja na Rússia do século XIX ou no Brasil dos dias de hoje.
Brilhante contador de histórias, seu texto era direto, conciso e sem grandes rebuscamentos. Dizia que “quanto mais objetivo, tanto mais forte” e que “a concisão é irmã do talento”.
O livro “Negócio Fracassado e Outros Contos de Humor” é uma boa amostra do tão decantado estilo Tchekhoviano. São 38 contos que formam uma paisagem viva da Rússia da época (1882 a 1887). A cada conto, desfilam personagens variados com histórias tão comoventes quanto hilárias. Merecem sua narrativa os amores não (ou mal) correspondidos, o desejo de ascensão social, a lentidão do serviço público, a corrupção, o casamento por interesse, a ganância, a mediocridade desesperada,  a espantosa idiotia humana.

Em “Uma história terrível” um homem ao chegar em casa, se depara com um caixão “para uma pessoa de estatura mediana" que "a julgar pela cor, destinava-se a uma moça jovem” Além do pavor que a visão desperta, surge um diálogo interior e um duelo com o próprio pânico que ele dividirá com o leitor. “Não me espantaria se o teto tivesse caído, o chão tivesse afundado ou as paredes tivessem desmoronado. Mas como poderia ter surgido no meu quarto um caixão?” Cabe a nós acompanhá-lo nessa divagação.

Em “A Veranista”, Liôlia, "uma loura bonitinha de vinte anos" compara seu passado de estudante com a vida ao lado do  marido "bonito, jovem e formado, respeitado por todos, porém tosco, não lapidado e absurdo como quarenta mil de seus semelhantes, igualmente absurdos”. "Sobre o que ele pensa, Liôlia não consegue saber. O que ela sabe é que, depois de pensar durante duas horas, ele não fica nem um pouquinho mais inteligente e continua a dizer disparates".

Em “A Visita”, acompanhamos o desespero de Zeltérski, que vê a madrugada adentrar sem que sua visita se dê conta de que é hora de partir. “Desde que chegara, logo após o almoço, ele se sentara no divã e não havia se levantado nem uma vez, como se estivesse grudado ali.” Ele tentará de tudo para conseguir seu intento, enquanto a visita indesejável ali permanecerá, impassível. É provável que você tenha ficado curioso em saber o fim dessa e das outras histórias. Fique à vontade, porque a leitura vale a pena.

Se nas histórias de Tchékhov, os personagens são detalhadamente retratados, especialmente do ponto de vista psicológico, no relato das situações ele não se estende além da conta. Seus contos seguem direto ao ponto, com dramaticidade e humor na medida certa. Alguns terminam bruscamente, outros trazem desfechos inesperados. Todos nos levam à reflexão, como se cada um trouxesse uma mensagem a ser extraída. Seriam parábolas? Não exatamente. Tchékhov não censura, não critica comportamentos, ele compreende - e aceita - o ser humano como ele é. Seus contos trazem complexidade, torpeza, sentimentos baixos, comoção, dor, graciosidade, sarcasmo e, arrematando tudo isso, um toque de humor. Seus personagens são tão comuns , tão cotidianamente humanos, que chegam a ser patéticos. Não há romantismo nem inocência. Não há santos, todos apresentam defeitos, alguns condenáveis. A mensagem é: somos todos pecadores. Um Nelson Rodrigues da terra de Tolstoi?
Viveu pouco Tchékhov, morreu aos 44 anos e nunca acreditou muito no próprio talento. Achava que após sua morte, em sete anos, ninguém mais se lembraria dele. 150 anos depois, é reverenciado por sua contribuição à literatura mundial e nunca se falou tanto em sua obra. Nem em um conto de sua autoria, ele teria imaginado um desfecho igual.

 
Um Negócio Fracassado e Outros Contos de Humor.
Tradução do russo e prefácio de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares.
L&PM Pocket. 206 páginas.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Memórias de Minhas Putas Tristes - Gabriel García Marquez.

“No ano que completei noventa anos, quis presentear-me com uma noite de amor louco com uma adolescente virgem”. Assim começa o livro “Memórias de Minhas Putas Tristes”, escrito e publicado em 2004, pelo genial escritor Gabriel García Marquez, Prêmio Nobel de Literatura 1982.
A história se passa no início do século XX, numa cidade da Colômbia. O protagonista e narrador é um homem “feio, tímido e anacrônico” que durante sua vida jamais conhecera o amor, habituando-se à solidão e ao sexo com prostitutas.
Jornalista e escritor, ele sobrevive de sua aposentadoria como telegrafista e da publicação de crônicas dominicais no jornal El Diario de La Paz.
Chegando ao fim da vida, e tomado pela urgência de ter uma história de amor para contar, decide ligar para Rosa Cabarcas, dona de um bordel clandestino. Rosa, que não vê o cliente há 20 anos, considera o pedido, no mínimo, trabalhoso, pois as moças disponíveis eram, segundo ela, “usadas”. Ele insiste que seu pedido seja realizado o quanto antes, visto que numa questão dessas, e em sua idade, “cada hora é um ano”.
Logo será surpreendido por um telefonema de Cabarcas:  - Tenho o teu presente.
Era uma menina de 14 anos, cuja família passava por necessidades, o que a obrigava a vender sua virgindade à melhor oferta. O homem não sabe, mas logo será invadido por um sentimento do qual até então só ouvira falar: o amor. Longe de realizar seu desejo carnal, é a sensação do inatingível que o arrebata, quando encontra a menina dormindo no quarto que lhe fora destinado. Incapaz de despertá-la, passa a noite a admirá-la, fato que se repetirá na noite seguinte, na outra e nas demais. Sem querer saber seu nome, o velho jornalista a batiza de Delgadina. Trata-se da moça perfeita, porque intocável. O ideal personificado do amor, pois jamais se concretiza: uma bela adormecida. Passa a amá-la, não pelo que ela lhe oferece, mas pelo que não pode (e não quer) alcançar. Como se o amor quando atingido perdesse o encanto
Estabelece-se um pacto sem palavras. Diante dessa beleza silenciosa, o velho jornalista passa a escrever as melhores crônicas de sua vida. De colunista medíocre e ultrapassado, torna-se autor concorrido, emocionando leitores que aguardam ansiosos pelos textos do próximo domingo.
Assim será até que um assassinato no local, leva ao fechamento do bordel. Separado de sua amada, ele sentirá, durante um ano, todos os sentimentos que o amor provoca em uma vida inteira: ciúme, aflição, medo, saudade, dor.
"Naquela tarde, de regresso a casa outra vez sem o gato e sem ela, verifiquei que não só era possível morrer, mas que eu próprio, velho e sem ninguém, estava a morrer de amor".
À primeira vista, o tom do livro parece excessivamente melancólico e o tema, perverso ou indecoroso. Mas na imaginação privilegiada do autor e na perfeição com que conduz a história, esse romance, que tem quase a extensão de um conto, transforma-se numa  linda fábula sobre a descoberta do amor, após uma vida inteira de vazio e solidão. Mesmo não sendo o melhor romance de Gabriel García Marquez, "Memórias de Minhas Putas Tristes" nos brinda com um texto primoroso e uma trama bem engendrada, tão comum em suas obras. Por ser um livro curtinho, apenas 132 páginas, pode ser lido rapidamente, deixando um gosto de "quero mais". Quase uma degustação, para abrir o apetite.
Apesar de certa semelhança com o tema de Lolita, de Wladimir Nabokov, a história de Marquez traz o romantismo de um conto de fadas. No desenrolar da história, os papéis se invertem e a bela adormecida transformará o velho amargurado num adolescente apaixonado. Ironicamente, é uma moça que dorme, que o faz acordar para a vida, aos 90 anos de idade.
• Editora: Record
• Autor: GABRIEL GARCIA MARQUEZ
• Número de páginas: 132