domingo, 19 de setembro de 2010

Todos os Nomes de Saramago.


Um certo Senhor José, já chegado aos 50 anos, sem família, sem amigos, sem grandes ambições.
Este é o principal personagem do romance Todos os Nomes, do genial autor português José Saramago. Ironicamente, o único no livro que é efetivamente nomeado (os demais são identificados por expressões como “a senhora do rés do chão direito”, “a moça desconhecida” ou “o marido ciumento”).
Funcionário antigo da Conservatória Geral do Registro Civil, Senhor José mora numa casa contígua à repartição, que possui uma porta de acesso direto (mantida sempre fechada, por ordens superiores). Solitário e melancólico, preenche seus dias de folga colecionando recortes de jornais e revistas sobre a vida de pessoas famosas: políticos, atores, músicos, banqueiros ou assassinos.

Certo dia, tem a ideia de acrescentar a esses recortes dados mais precisos: o nome do pai, da mãe, a data do batizado. Como funcionário do Registro Civil, tem a faca e o queijo na mão: basta abrir a porta proibida. Decide entrar no prédio na calada da noite para recolher as preciosas informações.
"Imagine quem puder o estado de nervos, a excitação com que o Senhor José abriu pela primeira vez a porta proibida, o calafrio que o fez deter-se à entrada como se tivesse posto o pé no limiar dessa câmara onde se encontrasse sepultado um deus cujo poder, ao contrário do que é tradicional, não lhe adviesse da ressurreição, mas de tê-la recusado”.

Da primeira transgressão para as demais, será  um pulo. Quando, em meio aos verbetes surrupiados, aparece por acaso, a ficha de uma moça de 36 anos (uma ilustre desconhecida), ele é tomado imediatamente pelo desejo de descobrir mais sobre a mulher misteriosa. “Saber o nome dos pais, dos padrinhos, a rua, o número e o andar onde ela viu a luz e sentiu a primeira dor”. É esse sentimento que irá promover uma reviravolta em sua vida. "É absurdo, mas já era tempo de fazer algo absurdo na vida".
Por essa obsessão, ele irá mentir, fingir, enganar, correrá riscos, adentrará feito um gatuno a escola onde a menina estudou, visitará a casa onde ela viveu. De funcionário austero, torna-se invasor furtivo da casa (e da vida) alheia. Usando de falsa credencial, irá pressionar os novos moradores a lhe revelarem o que (não) sabem sobre o paradeiro da moça.
“Não seria mais fácil buscar na lista telefônica ?”– sugere a senhora do rés do chão direito.
Mas Senhor José não quer a vitória fácil. Prefere montar o quebra-cabeça (outro passatempo de solitários). E é nessa busca cheia de riscos que ele ganha mais gosto pela vida.
A narrativa de Todos os nomes assemelha-se a uma teia de aranha, onde quanto mais se avança, mais se sente enveredar por caminhos quase sem volta. Como a repartição onde trabalha, a jornada de Senhor José é um labirinto de informações onde é fácil se perder. Semelhante ao fio de Ariadne, acompanhamos a saga do personagem, conduzidos pela escrita singular de Saramago. Feito novelo que se desenrola, mas não desata, ele irá nos prender até o fim. Haverá surpresas nessa busca, lembrando que a vida é feita delas. Caberá ao leitor descobri-las.
Em certo trecho do livro, Senhor José analisa: “Alguns dos que nascem, entram nas enciclopédias, nas histórias, nas biografias, nos catálogos , nos manuais, nas coleções de recortes. Os outros são como a nuvem que passou sem deixar sinal de ter passado, se choveu, não chegou a molhar a terra. Como eu.”
Todos os Nomes é um romance sobre pessoas comuns que, em sua existência, "não chegam a molhar a terra", mas que nem por isso deixam de viver sua história.
 
José Saramago
Publicação: 1997
Editora: Companhia das Letras

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