
A partir daí, por meio de pesquisas e entrevistas com biógrafos, amigos e especialistas na obra de Gertrude Stein, monta o quebra-cabeça do que seria a personalidade da escritora, que se autodenominava “um gênio”.
Filha de um rico imigrante judeu-alemão, era a caçula de cinco irmãos e perdeu a mãe aos 14 anos. Poucos anos mais tarde, com a morte do pai, o irmão mais velho, Michael, assumiu os negócios da família e Gertrude passou a viver de renda. Em 1903, parte com o irmão Leo para Paris e com ele começa a se interessar e colecionar obras de arte moderna.
Teria início aí a lenda da casa da Rue Fleurs, 27, que virou ponto de encontro de artistas e intelectuais, muitos deles, expatriados americanos, que ela chamava “the lost generation”. A recusa do irmão em reconhecer sua genialidade, fez com que os dois se afastassem para sempre. Quando Leo foi embora, Alice já havia entrado na vida de Gertrude.
Era um casal estranho. Em suas memórias, Mabel Rodge revela que "Gertrude era prodigiosa, quilos e quilos e quilos empilhavam-se em seu esqueleto". Quanto a Alice, "era franzina e morena, com lindos olhos cinzentos pesados.” A maioria dos amigos considerava Gertrude fascinante e charmosa, enquanto Alice era feia e apagada.
Em suas pesquisas, Janet descobre uma Gertrude acostumada a “ser cuidada por pessoas que sentiam-se incapazes de agir de outro modo. E a maior de todas as abelhas operárias era Alice Toklas”. Na relação desigual que mantinham, Gertrude se ocupava de sua genialidade e Alice, dos afazeres domésticos. Enquanto Stein deixava escorrer seus textos para o papel, era a companheira quem os revisava e datilografava. Diferenças à parte, é certo que as duas nutriam uma grande afeição mútua.
Um dado explorado no livro é a amizade de Stein por Faÿ Bernard, um professor colaboracionista nazista, mais tarde condenado à prisão perpétua por envolvimento na prisão, deportação ou morte de milhares de maçons durante a ocupação da França pelos alemães. Bernard foi fundamental para garantir a permanência das duas judias em Paris, sem serem importunadas. Ao que parece, elas não tinham ideia da gravidade das ações do amigo.
Se o retrato do artista se faz pela sua obra, em "Duas Vidas" Janet também se ocupa de analisar a escrita de Gertrude Stein. Para isso, consulta especialistas, como Edward Burns, William Rice e Ulla Dydo. Por sugestão destes, debruça-se sobre um de seus mais famosos livros, "The Making of Americans", um romance gigantesco de 925 páginas, que mesmo alguns amigos de Stein não conseguiram ler. Malcom o define como um livro “estranhíssimo” o qual, à medida que avança, “parece-se menos com um romance e cada vez mais com um pântano onde escritora e leitor se afundam”.
Os textos experimentais de Stein eram considerados densos demais, o que dificultava o interesse das editoras. Segundo Malcom, “ela não sabia inventar” e "escrevia quase que somente de suas próprias experiências". A aceitação pelo grande público só aconteceria aos 51 anos, com a publicação de "Autobiografia de Alice B. Toklas", que escreveu dando voz à sua companheira.
Com a morte de Gertrude de câncer, em 1946, Alice “cuidou do santuario da lenda literária e pessoal de Stein com a devoção de um cachorro à sepultura de seu dono”. "A lembrança de Gertrude é toda minha vida" escreveu ela a Donald Gallup, em 1947.
"Duas Vidas: Gertrude e Alice" apresenta um texto instigante, fruto de um jornalismo investigativo da mais alta qualidade. Aos fãs de Gertrude Stein, deve ter incomodado bastante. Mas, para quem conhece pouco sobre sua vida e obra, desperta ainda mais a curiosidade de lê-la e (tentar) compreendê-la.
"Duas Vidas: Gertrude e Alice" - Janet Malcom.
Editora Paz e Terra.