O primeiro
parágrafo já é um jogo de palavras que sibilam, remetendo a seu nome-sussurro:
Alice.
E já se prenuncia a vertiginosa viagem a que nos conduzirá a autora
nesse caso de amor contemporâneo. Percebe-se um mergulho, um salto sem
paraquedas, um voo no escuro.
“Aliciada ela foi, vá lá. Mas porque quis, das
delícias ao suplício. Vai ver achou que tinha alicerce. E tanto tinha que não
perdeu a lucidez, nem mesmo na alegria inicial do cio, por mais variadas que
tenham sido os desvairados desvãos e deslizantes desvios.”
É dessa forma que Alice, a protagonista, invade a vida de Ulisses, o outro. E também a do leitor.

Quando Alice, professora, descasada, conhece Ulisses, cineasta, casado,
o que se segue é uma viagem pelo mundo da paixão, recheada de referências
cinematográficas, enquadramentos sutis, citações poéticas e trechos de
contos de fadas. Tudo para tecer o fio da meada que conduz à relação
tempestuosa, voraz e intensa de Alice e Ulisses.
Retrato de uma
época (final dos anos 70), Alice e Ulisses registra um amor
contemporâneo, em tempos de ditadura, nos quais a mulher ainda estava
presa a estereótipos e o homem (como sempre) se dividia entre aventuras
extraconjugais e as bases sólidas de um casamento de aparências. Num tempo em que
a relação homem-mulher ainda era cheia de arestas, com homens que podiam tudo e
mulheres que pediam nada, a autora exerce sedução desde a primeira página,
onde o encontro amoroso já está presente. E a poesia também.
Trata-se de um caso
de amor, contado de um só fôlego, em exatas 113 páginas, usando como artifício
um paralelo entre duas personagens universais, a destemida Alice (de Lewis
Carrol), "capaz de mergulhar em tocas e viver aventuras" e o bárbaro
conquistador Ulisses (de Joyce, releitura do Ulisses de Homero), em sua
odisseia particular. Só da mente de uma autora que se percebe contumaz
leitora e amante dos clássicos, poderia surgir esse inusitado casal, cujos
nomes rimam – como bem assinala uma personagem do livro, o bruxo Augusto (amigo
de Alice), que os une - reúne.
É num evento de
cinema que Alice, mulher moderna "que acha coquetel um pé no saco” e
sempre “se esquece de pegar o guardanapo de papel para limpar a mão”,
conhece o cineasta Ulisses, que se encanta com a figura exótica “de cabelo solto
e um imenso xale de velha siciliano, indeciso entre escorregar e enrolar os
ombros”. Não se desgrudam mais. Entre os anos 70 e 80, vivem uma paixão
atemporal, tanto ilícita quanto livre.
Bem que ela deveria
ter desconfiado de que “o nome de Ulisses já indicava sua maneira de ser,
saqueador de cidades, astuto e ardiloso, viajante e explorador.” Mas Alice, que
tinha “total disponibilidade para mergulhar em tocas pela terra adentro",
paga pra ver.
O romance é
entremeado por citações de contos de fadas, trechos de poemas e cenas de filme.
Ela cita versos, ele a enquadra em imagens. Ela sabe onde pisa, ele se enreda,
sem controle. “Foi duro aprender que quanto mais fosse amada mais ia ser
dominada.” Mas Alice não é mulher de se dominar. Conhece os scripts, os
lugares comuns do roteiro. Ela sabe como a história termina. Todos os
personagens dele (o cineasta), ou matam ou morrem. “Você vai me matar.”
Quando Alice está
cada vez mais envolvida numa relação na qual não é só Ulisses quem perde a
razão, surge em seu caminho Adélia, a esposa (do grego Adelo, invisível). É a
Penélope de Ulisses (ou Molly, de Joyce) entrando em cena.
"E, Deus do Céu, lá estava ela sentada diante da divina Adélia, deusa-Amélia do lar, muito arrumada nos cabelos pintados e penteados em cabeleireiro". E uma inusitada proposta fará nossa protagonista repensar todo o roteiro.
"E, Deus do Céu, lá estava ela sentada diante da divina Adélia, deusa-Amélia do lar, muito arrumada nos cabelos pintados e penteados em cabeleireiro". E uma inusitada proposta fará nossa protagonista repensar todo o roteiro.
É justamente
Adélia, tão tradicional, tão antiquada, tão Amélia, quem trará uma alerta a
Alice: - A vida não é um conto de fadas, minha filha.
Numa linguagem sutilmente cinematográfica, Alice, que também é cinéfila, descobrirá qual será seu script.
Numa linguagem sutilmente cinematográfica, Alice, que também é cinéfila, descobrirá qual será seu script.
Alice & Ulisses
Ana Maria Machado
96 páginas
Editora: Nova Fronteira