quinta-feira, 17 de abril de 2014

Do Amor e Outros Demônios (Para recordar o querido Gabo)


Do Amor e Outros Demônios traz todos os ingredientes que compõem uma história de Gabriel Garcia Márquez. Sim, baseia-se em um acontecimento por ele vivenciado. Sim, utiliza elementos da mitologia popular. Sim, encerra uma crítica à intolerância religiosa.  E sim, mistura amor e sofrimento, como se ambos fossem sentimentos indissociáveis.
Nesta obra publicada pela Editora Record, em 1995, ele narra uma história passada em fins do século XVIII na Colômbia, então Colônia Espanhola, envolvendo um monge exorcista e uma menina  supostamente possuída pelo demônio.
O livro tem inspiração numa história real, de seus tempos de repórter em 1949, quando, ao cobrir a remoção das criptas funerárias de um Convento, depara-se com uma ossada com cabelos cor de cobre de aproximadamente 22 metros. Recorda-se, então, de uma lenda contada por sua avó sobre uma marquesinha milagreira de longa cabeleira, que morrera mordida por um cão raivoso. Anos depois, o já famoso escritor recria a história da menina, brindando-nos com uma dolorosa narrativa sobre o amor – e seus demônios.
A vida de Síerva Maria já começou errada, a partir do casamento, forjado por interesse, do Marquês de Casalduero e sua segunda esposa, Bernarda, que não trouxera felicidade a nenhum dos cônjuges, seja o marido enganado ou a esposa ardilosa. 
Logo eles passariam a viver distantes um do outro, tendo ela arranjado inúmeros amantes na tentativa de encontrar um prazer nunca alcançado. Mas antes que isso acontecesse, um bebê fora concebido: Síerva Maria de Todos Los Angeles. Rejeitada pelos pais desde o nascimento – sua mãe a odiou na primeira vez que a amamentara -, cresceu entre a criadagem negra da casa, recebendo deles o nome de Maria Mandinga e sendo iniciada nos ritos africanos. Com seus colares de contas dos orixás e uma longa cabeleira ruiva que lhe pendia aos pés como um vestido de noiva, a menina não parecia ser deste mundo.
Quando, aos 12 anos, Síerva Maria foi mordida por um cão, cria-se a suspeita, segundo a crendice da época, de que acabaria possuída por demônios. O pai, com remorsos, cai de amores pela menina, que, criada sem carinho, recebe a aproximação com desconfiança. Procurando ajuda na ciência e no curandeirismo para salvar a filha, ele chega  à casa do médico mais famoso da região, Abrenúncio de Sá Pereira Cão (personagem dos mais instigantes da obra). Ateu convicto de alma generosa, o médico afirma que Sierva Maria não tinha sintomas de raiva, mas sim, de falta de amor. Note-se aí a comparação sugerida pelo autor entre raiva- doença e a raiva- sentimento, da mesma forma como ele irá associar mais à frente os sinais da possessão demoníaca com sintomas da paixão.
Encaminhada ao Convento de Santa Clara para ser tratada por “obreiros” de Deus, percebe-se o fanatismo e as arbitrariedades da Igreja de então, expostos por Márquez na forma com que a menina é (mal) acolhida no lugar que deveria salvá-la.. Demoram a notar sua presença, e quando o fazem, é para considerar seus estranhos hábitos, seus colares africanos, seu conhecimento do idioma ioruba e sua força incomum, atribuindo a estes um sinal do demônio – tem se medo daquilo que de desconhece.
Encerrada numa cela escura, sem contato com o mundo, a menina é banhada com água benta e esfregada até aumentar as feridas. Logo sua cela estará coberta de excrementos e seus cabelos, de piolhos. Como profetizara Abrenúncio, o abandono e os maus tratos é que acabariam por torná-la irrecuperável.
Para investigar o caso, chega ao convento o jovem Padre Cayetano Delaura, um literato de 36 anos. Na primeira tentativa de exorcismo, ele encontra uma menina enfurecida vociferando em dialeto desconhecido. Retorna ao bispo afirmando ser aquilo – “um demônio, meu pai, e dos mais terríveis”. Logo, porém, ele já estará encantado pela menina. Será este o verdadeiro demônio que ele irá enfrentar, com todas as vicissitudes, vícios, fraquezas e maravilhas. 

Os demônios que habitavam Síerva Maria e alcançaram o Padre Delaura tinham um nome: amor.


R.I.P, Gabo. 17-04-2014

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