quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A Autobiografia de Alice B. Toklas (Gertrude Stein)


Duas mulheres, uma época, uma geração. Um legado artístico e intelectual inestimável. Ainda que não fosse considerada a diva do modernismo, deve-se à escritora norte-americana Gertrude Stein (1874-1946) o mérito de ter reunido em torno de si, na efervescente Paris do início do século XX, algumas das figuras mais brilhantes da história artística e literária mundial. Um grupo de jovens, até então desconhecidos e expatriados, que acabou por legar ao mundo gênios da arte, como Pablo Picasso, Henri Matisse, Juan Gris e da literatura, como Ernest Hemingway, Ezra Pound e F. Scott Fitzgerald. Mais tarde, ela se referiria aos escritores norte-americanos que conhecera e acolhera em Paris como a "geração perdida".
Vindos dos EUA e de alguns países da Europa e radicados na capital francesa, no período da 1a Guerra Mundial, esses jovens intelectuais buscavam novas formas de fazer arte e literatura. E descobriram, no célebre sobrado da Rue de Fleurus, 27, onde Gertrude Stein morava com sua companheira, Alice, um ambiente propício para debater suas aspirações.
Foi nesse endereço que esse jovens, ávidos por aprender, criar e inovar, passaram a se reunir nos famosos jantares de sábado à noite. E é em torno dessa época mágica que se passa  "A Autobiografia de Alice. B. Toklas". Publicado em 1933, trata-se de um jogo literário em que Gertrude Stein dá voz à sua companheira de décadas, a também norte-americana Alice ((1877-1967). Sob o pretexto de contar a vida de Toklas, Stein vê a oportunidade de a narrar a história de uma geração. E, é claro, falar de si mesma.

O resultado é um divertido panorama de um dos períodos mais ricos da produção cultural do século XX.
No movimentado sobrado, recoberto de quadros de Matisse, Picasso, Renoir e Cézanne, Gertrude e Alice recebiam todo tipo de gente interessada em cultura: pintores, escultores, músicos e escritores. O que começou como ponto de encontro de jovens talentosos em início de carreira, acabou se tornando o palco de um movimento espontâneo e de vanguarda que modificou o jeito de pensar e fazer cultura no mundo: o modernismo.

"Em qualquer vilarejo onde existisse um rapaz ambicioso, mal ouvia falar no número 27 da Rue de Fleurus e, desde então, não se pensava noutra coisa a não ser chegar lá."

Ao escrever "A Autobiografia de Alice B. Toklas", Gertrude queria, antes de tudo ser lida. Já havia escrito "The Making of Americans" e "Three Lives", dentre outras obras, algumas compostas de mais de 900 páginas, que muita gente de seu círculo nem chegou a ler. Na área da poesia, sua produção consistia em experimentos sonoros, que tinham por recurso a repetição. Ela sabia que seus escritos nem sempre eram compreendidos - publicá-los constituía uma missão-  e que sua figura era mais admirada que sua obra. Ao sugerir que Alice escrevesse uma autobiografia, imediatamente tomou para si a tarefa, deslumbrando ali uma forma original de contar sua própria vida.
Acertou em cheio. A obra foi a primeira produção de Gertrude Stein a se tornar um best-seller. Com uma linguagem peculiar e quase informal, a "Autobiografia" divide-se em sete capítulos, onde, sem muito respeito à ordem cronológica, Gertrude/Alice conta como foi a sua vida antes e depois de se radicar em Paris e como conheceu (e influenciou) nomes que, posteriormente, o mundo inteiro acabaria por admirar. Entre detalhes do cotidiano, como os afazeres domésticos ou passeios pela vila, desfilam pelas páginas, ao bel prazer da narradora, Pablo Picasso, com suas mulheres e seus quadros, Henri Matisse, Georges Braque, Juan Gris, Guillaume Apollinaire, a livreira Adrienne Monnier, Sylvia Beach ( fundadora da primeira versão da Livraria Shakespeare e Company); o jovem escritor Ernest Hemingway.
Pela voz de Alice, descobrimos que Rousseau era "um francesinho baixo e insosso, de cavanhaque"; que Guillaume Apollinaire tinha "traços bem-feitos e faces rosas"; Juan Gris " era uma pessoa atormentada e não muito simpática" e seus quadros eram "sombrios". Já Picasso era "baixinho, de movimentos ágeis, mas não irrequietos, os olhos possuindo a estranha facilidade de se arregalarem e absorverem o que queriam ver".

"Eu me lembro muito bem da impressão que tive de Hemingway, naquela primeira tarde. Era um rapaz extraordinariamente bonito, de vinte e três anos de idade. Faltava pouco tempo para todo mundo ter vinte e seis. (...) Pelo visto era a idade ideal para aquela época e lugar."

"Matisse e Picasso, apresentados um  a outro por G.S e o irmão, ficaram amigos, apesar de inimigos. Hoje não são nem uma coisa nem outra. Naquela época, eram ambos."

A autora não desperdiça a oportunidade de, pela voz de Alice, compor um retrato generoso de si mesma:
"Posso dizer que só três vezes na vida encontrei gênios [...] Gertrude Stein, Pablo Picasso e Alfred Whitehead"."
Em dado momento, revela-se ter sido Alice que extraiu de um poema de Stein a famosa frase com a qual ficaria eternamente conhecida -  "rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa" - para mandar gravá-la nos papeis de carta oficiais da escritora. Coube a Alice, também, o privilégio de ter Picasso pintado os motivos de seus quadros em almofadas para que ela pudesse bordá-los. Graças a um pedido de Gertrude, que se revela uma modelo muito requisitada pelos amigos escultores e pintores. Para Picasso, a quem chamava "Pablo", chegou a posar mais de 90 vezes para o famoso retrato (que ilustra a capa dessa edição) que, na época, ninguém achou parecido com Miss Stein. Resposta de Picasso: - Mas vai parecer.
Igualmente interessantes são os relatos das viagens que as duas faziam na Europa, para passar temporadas em casas de amigos e suas aventuras como voluntárias na Guerra, transportando suprimentos para soldados nos hospitais, num velho fordeca apelidado Titia (Auntie), em referência a uma tia de Gertrude que, embora adorável, vez ou outra a deixava na mão. Foram tão compenetradas nessa missão, que receberam a condecoração Reconnaissance Française, pelos serviços prestados.
Em alguns trechos do livro, a voz de Alice se faz sentir mais forte: "Eu tinha estado na Rue de Fleurus todas as noites de sábado e ficava lá bastante tempo. Ajudei Gertrude Stein com as provas de Three Lives e depois comecei a datilografar The Making of Americans."
"Eu sou muito boa dona de casa, muito boa jardineira, muito boa bordadeira, muito boa secretária, muito boa editora, muito boa veterinária para cachorros e tenho de fazer tudo isso ao mesmo tempo, acho difícil ser uma escritora muito boa"
Mas não se engane quem pensa ser esta a história de Alice. Trata-se da vida de Gertrude, com seu peculiar senso de humor e suas particularíssimas opiniões. E é ao redor dela que tudo acontece.

O casal Gertrude e Alice não poderia ser mais diferente, o que não impediu que vivessem juntas por 39 anos, até a morte da primeira. Enquanto Gertrude era rechonchuda e simpática, Alice  era baixinha, magra e sem graça. Gertrude acostumou-se a ser servida, Alice a servir. Cabia a Gertrude, criar. A Alice, cuidar de assuntos práticos, como contratos ou passaportes. Mulher simples, preferia ficar à sombra da companheira, cozinhando, bordando e revisando seus manuscritos, ao passo que Gertrude adorava ser o centro das atenções,especialmente. Enquanto Gertrude se ocupava dos amigos "gênios", como Picasso ou Hemingway,  Alice se limitava a conversar e dar atenção a suas esposas, exatamente como faria um tradicional casal da época.
 É interessante perceber tais diferenças, acompanhando as histórias, sob a ótica de Alice, tendo a sombra de Stein, o tempo todo, dirigindo o espetáculo. O que, muito provavelmente, era o que ela fazia na vida real.
Ainda que "A Autobiografia" seja uma brincadeira literária de Stein, acabou se tornando seu mais bem-sucedido livro e o mais digerível de todos. É compreensível. Mais do que a história de Alice (ou Gertrude), trata-se do registro (bem-humorado) do surgimento de uma verdadeira revolução cultural. Um documento que descortina e nos torna espectadores in loco de uma época inesquecível da nossa história.

A Autobiogafia de Alice B. Toklas
Tradução de Milton Persson
Coleção LPM Pocket
264 páginas


Gertrude Stein nasceu em 1874, em Alleghany, Pensilvânia e faleceu em 1946, em Paris. Radicada em Paris desde 1903,  para onde se mudou com seu irmão Leo,  pouco tempo depois conheceu Alice B. Toklas, também norte-americana que foi sua companheira até o fim da vida. Autêntica, original e nada modesta, buscava em seus romances e poemas formas alternativas de expressão. Acolhendo um grupo de jovens artistas e escritores da Europa e EUA, acabou sendo mentora do surgimento de uma nova forma de arte: o modernismo. Entre outras obras, escreveu: The Making of Americans, Three Lives e A Autobiografia de Todo Mundo.



4 comentários:

  1. Mari, gostei muito do seu blog. Boa surpresa encontrar alguém que lê e compartilha suas impressões com inteligência e simplicidade.
    Também sou "rata de livraria" e "traça de sebo", ou seja, para meus filhos e amigos, uma "esquisitona".
    Poucos entendem por quê, tendo uns 700 livros em casa, continuo procurando mais.
    Um grande abraço.

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  2. Olá, Célia. Desculpe, eu acabei perdendo este seu comentário na correria de fim de ano. Pelo visto somos duas "esquisitonas". Também tenho uns 600 livros por aqui e quero mais! Abs.

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  3. Parabéns pelo post! Fiquei tão entusiasmada pela leitura que até comprei o livro para ler. Sou completamente apaixonada por qualquer coisa que leve ao caminho da arte e tenho certeza de que ver o ponto de vista dessa escritora deve ser muito enriquecedor e contagiante. Muito Obrigada por compartilhar seu universo de leitura.

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    1. Olá, amiga! Fico feliz em colaborar porque penso o mesmo. Quero entender o universo da arte e da literatura em cada época. O livro não é tão fácil de ler, embora seja o mais "digerível" das obras dela. Mas é fascinante do mesmo jeito!

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